quarta-feira, 11 de setembro de 2013 | |

Para não se esquecer

Ainda havia filetes de sangue nas águas rasas do Mapocho, o riozinho que corta Santiago, quando cheguei ao Chile para cobrir o golpe que derrubou o presidente constitucional Salvador Allende Gossens.

Era 21 de setembro de 1973, porque, nos dez dias desde que foi dado o golpe, o Chile ficara fechado por terra, mar e ar para que os militares pudessem provocar o derramamento de sangue que manchou o Mapocho e espalhou-se por todo o Chile, "desde el salar, ardiente y mineral/al bosque austral", como diz a canção "El pueblo unido jamás será vencido" que o grupo folclórico Quilapayún cantava nos tempos em que o sangue ainda não corria.

Deu tempo também de ver ao vivo o que se tornaria uma foto que ficou famosa no mundo inteiro: a queima de livros que trazia à memória o nazismo alemão.

Via-se então que não apenas o passo de ganso característico dos militares chilenos os aproximava de seus congêneres de outros tempos na Alemanha.

Tornou-se obrigatório deixar um pouco de lado o profissionalismo para oferecer-me como muleta (inútil, logo se veria) a pais de brasileiros exilados no Chile e desaparecidos desde o golpe.

Acompanhava-os ao Estádio Nacional, transformado em campo de concentração e morte, no que acabava sendo uma tortura adicional à falta de notícias sobre os filhos.

Ninguém dava informações à porta do estádio e, na falta delas, os parentes dos presos trocavam os piores presságios e contavam as mais horríveis histórias, que, ao longo dos anos, acabaram se provando verdadeiras, terrivelmente verdadeiras.

Dizia-se, por exemplo, que o cantor e compositor Victor Jara, que era adepto declarado da Unidade Popular, a coligação que o golpe apeou do poder, tivera os dedos quebrados durante a tortura no estádio, para que nunca mais tocasse as canções que embalavam os sonhos da esquerda no poder.

Jara não morreu no Estádio Nacional de Santiago, mas foi torturado até a morte no Estádio Chile, outro campo de concentração.

É fácil para qualquer ser humano com um dedo de sensibilidade sentir o pavor de pais que, primeiro, haviam perdido seus filhos para o exílio, depois do golpe no Brasil, e agora viam fugir a perspectiva de revê-los ainda que massacrados, mas pelo menos vivos.

Havia toque de recolher, primeiro a partir das 18h. Depois, das 20h. Eu me hospedara no então Hotel Carrera Sheraton, atrás do Palácio de la Moneda em que Allende se matou.

As noites eram intermináveis, trancado no quarto.

Olhava pela janela, via os sinais do ataque da Força Aérea ao palácio, uma sombra na praça vazia.

Ninguém na rua.

O semáforo, no entanto, continuava mudando do verde para o amarelo, para o vermelho, para ninguém, salvo um ou outro veículo militar, enquanto ao longe se ouvia o "ratatá" das metralhadoras, porque, dia após dia, noite após noite, "están matando chilenos/ay que haremos/ay que haremos", como cantavam os Quilapayún.

Ninguém no Chile os ouvia.

Fonte: Clóvis Rossi, “Sangue ainda escorria quando cheguei para a cobertura do golpe contra Allende”, Folha de S. Paulo, Mundo, 11/9/13.

PS: postei o texto na íntegra como lembrança do golpe militar e da posterior sangrenta ditadura de Pinochet no Chile. O golpe faz nesta quarta-feira 40 anos. É uma forma de fazer com que o terror comum a toda ditadura não seja jamais esquecido para que nunca se repita.

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