Mostrando postagens com marcador Denise Fraga. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Denise Fraga. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 3 de maio de 2013 | | 0 comentários

Nós e os outros

(...) Nós nos tornamos responsáveis pelo que cativamos porque é no outro que nos reconhecemos. Como que refletidos em espelhos variados, garantimos a certeza da nossa existência a partir de onde reverberamos. É a partir do outro que tomamos posse de quem somos. Do outro. E não dos outros. Um de cada vez montando o rico mosaico que compõe nossa personalidade.

Porque não existe Fulano. Existe o Fulano que se lê nos olhos de quem o recebe. Dois olhos e não milhares. Porque senão não é pessoa, é persona. Uma imagem de si que se irradia sem se alterar pela convivência, pelo recebimento, pela relação com o alheio. Um Fulano a partir de si, que mal se reconhece, mesmo com um bilhão de curtidas.

Fonte: Denise Fraga, “Megafones”, Folha de S. Paulo, Equilíbrio, 30/4/13.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012 | | 0 comentários

Você costuma ser prático?

Tenho medo da palavra "prático". Sempre me parece que o que é prático nos tira alguma coisa.

Acho que tudo começou no dia em que cheguei da escola e vi cortado o abacateiro do quintal da minha infância.

"É mais prático. Suja muito" - disse minha avó.


Eu não podia acreditar. Já não bastava terem cimentado o gramadinho onde eu fazia incríveis florestas, agora eu teria apenas aquele toco no meio do cimento para sentar. Francamente! Não gosto do que é prático. Prático me parece mínimo, sem detalhes. E Deus mora nos detalhes.


No mês passado, estive em temporada no centro do Rio. Fazia tempo que eu não andava por lá. Tentei achar um restaurante onde eu costumava ir almoçar com meu pai. Era uma dessas tabernas da Lapa, pequenas, baratas e com comida maravilhosa - vinda de uma senhora portuguesa escondida na cozinha.


Procurei loucamente pelas ruazinhas atrás da Cinelândia e quis gritar de alegria quando vi o mesmo letreiro ainda na porta.


O lugar era o mesmo, mas tinha sido azulejado, os quadros, retirados das paredes e a comida, agora, era cobrada a quilo. Uma fila para servir, outra para pesar, bandejas, talheres ensacados, sachezinhos de sal e nem sequer um caldeirão de caldo verde ou uma lasca de bacalhau que fosse no bufê.


Achei que tinha mudado o dono e apenas mantido o nome, mas, quando olhei pelo quadradinho que dava pra cozinha, lá estava, curiosamente, a mesma senhora, castigada pelo tempo e pelo que é mais prático e econômico.


Lembrei-me da minha avó. Também prática. Também portuguesa. Quando mandou cortar o abacateiro ainda fazia sua própria massa de pastel. Viva fosse, talvez já tivesse se rendido à massa pronta, comprada no supermercado. Teria meu perdão. Quem pode resistir ao que é mais prático e econômico num mundo que justifica tudo pelo custo e pela eficiência?


Mas será que preciso mesmo ficar sacudindo travesseirinhos de sal úmido pelas mesas? Não consigo dizer porque uma coisa tão banal me provoca tanto mal-estar, mas sei exatamente o conforto que me dá um guardanapo de pano furadinho num restaurante decadente que não se rendeu ao bufê a quilo.


A felicidade não é prática e econômica. A felicidade mora nos becos. Quer coisa mais prática e econômica do que uma sala iluminada por uma lâmpada fluorescente? Quer coisa mais triste?


Se tivesse ido ao restaurante para jantar, acho que choraria na calçada.


Fonte: Denise Fraga"Precisar, não precisa", Folha de S. Paulo, Equilíbrio, 24/7/12.

segunda-feira, 30 de julho de 2012 | | 0 comentários

Sobre as amizades virtuais

Me despeço de minha amiga com um abraço apertado. "A gente se fala" - ela diz, enquanto se afasta de mim fazendo um gesto no meio do peito. Por um momento, achei que ela ia fazer um desses coraçõezinhos de polegares com que as pessoas andam "espalhando amor" por aí. Seria muito estranho, pois ela não é nada afeita a esse tipo de modismo.

Aos poucos fui detectando o que suas mãos diziam. Mexia freneticamente os polegares no novo gesto que tomou conta da humanidade: o digitar de mensagens. Minha amiga falou "a gente se fala" dizendo que a gente não ia exatamente se falar.

Por quê?! Por que é que depois de tão delicioso encontro só nos restava aquele tipo de comunicação? Por que não fez o tradicional polegar e mínimo na orelha? Não queria falar comigo? Ela me ama, bem sei que ela me ama. Por que não me ligaria?

Me dei conta do quanto fomos rapidamente tomados. Eu mesma já exibo uma destreza inacreditável naquele teclado mínimo que jurei não servir pra nada. Ao decodificar o gesto de minha amiga, percebi que eu também já ardia na febre dos torpedos.

Mas por que será que levamos um tempão digitando mensagens e não telefonamos? Uns dizem ser mais barato, outros, mais objetivo.

Falam ainda de respeito à privacidade, da liberdade de responder quando quiser, milhões de desculpas para o conforto do isolamento.

Vivo agora com o queixo no peito, nariz na tela e as mãos cada vez mais rápidas nesse tricô tecnológico que, na maioria das vezes, leva mais tempo do que se eu ligasse pra pessoa. Por que não ligo, santo Deus!? Economia?

No meu caso, confesso que não. Desconfio que algo maior se esconde por trás de nossas letras virtuais.

Bem sei que a vida escrita é mais charmosa que a vida falada, mas acho que estamos sendo destreinados para o convívio. Estaremos cada vez mais rápidos com nossos dedos e cada vez mais lentos para sair delicadamente de uma situação constrangedora, por exemplo. Viraremos as costas e mandaremos um e-mail no dia seguinte?

Tenho medo de, no futuro, saber detectar gestos como o de minha amiga, mas não conseguir ler nem lidar com uma baixada de olhar, um pigarro, um brilho no olho ou um sorriso burocrático. Códigos clássicos do sutil alfabeto das relações humanas.

Um outro amigo diz que o único desconforto do isolamento é o buraco que fica no peito do animal que foi feito pra viver em bando. Vou ligar pra minha amiga. Melhor, vou marcar um novo encontro.

Fonte: Denise Fraga, "A gente se fala", Folha de S. Paulo, Equilíbrio, 10/7/12.