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sexta-feira, 7 de março de 2014 | | 0 comentários

"Histórias de verdade"

Seis dos nove candidatos ao Oscar se basearam em histórias verdadeiras. Uma delas, a do músico sequestrado e escravizado por doze anos, me chamou a atenção pela semelhança com uma das raras histórias da escravidão brasileira que conhecemos pela pena do principal protagonista.

Trata-se da longa carta em que Luiz Gama conta sua vida. Resgatada do esquecimento em 1989 num artigo de Roberto Schwarz na revista do Cebrap, ela faz pensar, como observou o apresentador, na literatura brasileira que podia ter sido e não foi.

O documento começa desafiador: "Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação) de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã." O pai "fidalgo" esbanjou a fortuna em jogatina, não hesitando em vender o próprio filho com 10 anos. Assim como o protagonista do filme, foi reduzido à escravidão criminosamente.

Trazido a São Paulo, onde viveria até sua morte aos 52 anos, em 1882, aprendeu a ler graças a um estudante de quem se tornou amigo. A leitura abriu-lhe o acesso à autoeducação, pela qual conseguiu as provas para a libertação, que deve a si mesmo como primeiro ato de sujeito de seu destino.

Na excelente tese que defendeu em Paris, Ligia Fonseca Ferreira resume a singularidade de Gama: "Ele foi dos raros intelectuais autodidatas do século 19 e o único a ter pessoalmente vivido a escravidão, experiência que lhe devia inspirar a missão de vida: libertar os escravos e fazer valer seus direitos."

Encarnou o abolicionismo radical, popular, do meio urbano de São Paulo, ativo nos tribunais e na ação direta. Sua vida foi marcada por algumas constantes. A primeira, a insubmissão, da fuga do cativeiro até a demissão da Secretaria de Polícia "por turbulento e sedicioso". A turbulência consistia em "promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas" porque "detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os Reis".

Gama ressuscitou lei que "não tinha pegado", a de 7 de novembro de 1831, que declarava livres todos os escravos introduzidos a partir daquela data. Como se tratava da quase totalidade dos escravos existentes, sua simples aplicação teria sido uma revolução, liquidando praticamente a escravatura.

Não fosse, é claro, a dificuldade de vencer a parcialidade e má vontade de juízes e governo identificados com os senhores. Essa é, portanto, a segunda constante da vida do rábula, do prático que nunca pisou academia, mas foi o maior advogado do Brasil: ter colocado todo seu conhecimento de Direito a serviço da liberdade de escravos que não tinham como pagá-lo.

Sílvio Romero o consagrou como "o mais apaixonado, o mais entusiasta, o mais sincero abolicionista brasileiro." Seu maior título de glória, porém, é o que fixou no fecho da carta autobiográfica: "Saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes, e para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime". Uma história gloriosamente verdadeira e bem superior à do filme.

Fonte: Rubens Ricupero, “Folha de S. Paulo”, Mundo, 3/4/14.

Em tempo: postei o texto na íntegra, e não apenas dois parágrafos, como recomendado pela “Folha”, porque este blog é meramente pessoal, sem nenhuma finalidade comercial, e acima de tudo porque a história merece.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013 | | 0 comentários

Liberdade, liberdade!


Este é o registro de venda de um garoto de 8 anos de idade. Sim, venda, mercadoria. Um escravo.

O documento era parte de uma exposição sobre a escravidão, que vi na sede das Nações Unidas (ONU) em Nova York (EUA) em abril de 2012.

Posto a foto hoje, nesta data tão significativa para os negros, a que celebra o líder Zumbi dos Palmares, como lembrança de uma parte triste da história da humanidade, uma barbárie que não se deve esquecer para que nunca mais se repita.

Em tempo: no mundo atual ainda existem muitas formas de escravidão, em muitos lugares. Sobre isto, recomendo assistir às reportagens da fenomenal série "Freedom Project", da CNN (no Facebook aqui).

sexta-feira, 15 de abril de 2011 | | 0 comentários

Um poema (e uma lembrança)

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .

(Castro Alves, "Navio Negreiro")

sexta-feira, 11 de março de 2011 | | 0 comentários

E a história ressurge...

Há muito tempo o Rio de Janeiro não recebia notícias tão boas de seu passado. É provável que uma equipe de arqueólogos do Museu Nacional tenha encontrado nas escavações da zona portuária as lajes de pedra do cais do Valongo. Entre 1758 e 1851, por aquelas pedras passaram pelo menos 600 mil escravos trazidos d'África. Metade deles tinham entre 10 e 19 anos.

Devolvido à superfície, o cais do Valongo trará ao século 21 o maior porto de chegada de escravos do mundo. Se ele foi soterrado e esquecido, isso se deveu à astuta amnésia que expulsa o negro da história do Brasil. A própria construção do cais teve o propósito de tirar do coração da cidade o mercado de escravos.

A região da Gâmboa tornou-se um mercado de gente, mas as melhores descrições do que lá acontecia saíram todas da pena de viajantes estrangeiros. Os negros ficavam expostos no térreo de sobrados da rua do Valongo (atual Camerino). Em 1817, contaram-se 50 salas onde ficavam 2.000 negros (peças, no idioma da época).

Os milhares de africanos que morreram por conta da viagem ou de padecimentos posteriores, foram jogados numa área que se denominou Cemitério dos Pretos Novos.

Ele foi achado em 1996, durante a reforma de uma casa e, desde então, está sob os cuidados de arqueólogos e historiadores. O cemitério foi soterrado por um lixão, verdadeiro monumento à cultura da amnésia. Devem-se à professora americana Mary Karach 32 páginas magistrais sobre o Valongo. Estão no seu livro "A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro - 1808-1850".

Com o possível achado do cais, o prefeito Eduardo Paes anunciou que transformará a área num museu a céu aberto. (Cesar Maia prometeu algo parecido com o cemitério, mas deu em pouca coisa.) Felizmente, as obras do porto respeitarão as restrições recomendadas pelos arqueólogos, até porque, se o Cais do Valongo não estiver exatamente onde se acredita, estará por perto.

(...) Quem quiser saber mais (e muito) sobre o Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos, pode buscar na internet, em PDF:


- Valongo: O Mercado de Escravos do Rio de Janeiro, 1758-1831, do professor Cláudio de Paula Honorato.

- À flor da terra: O Cemitério dos Pretos Novos do Rio de Janeiro, de Júlio César Medeiros da Silva Pereira.


Fonte: Elio Gaspari, “O Rio ganhou dois presentes da história”, Folha de S. Paulo, Poder, 9/3/2011.