Seis dos nove candidatos ao Oscar se basearam em histórias
verdadeiras. Uma delas, a do músico sequestrado e escravizado por doze anos, me
chamou a atenção pela semelhança com uma das raras histórias da escravidão
brasileira que conhecemos pela pena do principal protagonista.
Trata-se da longa carta em que Luiz Gama conta sua vida.
Resgatada do esquecimento em 1989 num artigo de Roberto Schwarz na revista do
Cebrap, ela faz pensar, como observou o apresentador, na literatura brasileira
que podia ter sido e não foi.
O documento começa desafiador: "Sou filho natural de
uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação) de nome Luiza Mahin,
pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã." O pai
"fidalgo" esbanjou a fortuna em jogatina, não hesitando em vender o
próprio filho com 10 anos. Assim como o protagonista do filme, foi reduzido à
escravidão criminosamente.
Trazido a São Paulo, onde viveria até sua morte aos 52 anos,
em 1882, aprendeu a ler graças a um estudante de quem se tornou amigo. A
leitura abriu-lhe o acesso à autoeducação, pela qual conseguiu as provas para a
libertação, que deve a si mesmo como primeiro ato de sujeito de seu destino.
Na excelente tese que defendeu em Paris, Ligia Fonseca
Ferreira resume a singularidade de Gama: "Ele foi dos raros intelectuais
autodidatas do século 19 e o único a ter pessoalmente vivido a escravidão,
experiência que lhe devia inspirar a missão de vida: libertar os escravos e
fazer valer seus direitos."
Encarnou o abolicionismo radical, popular, do meio urbano de
São Paulo, ativo nos tribunais e na ação direta. Sua vida foi marcada por
algumas constantes. A primeira, a insubmissão, da fuga do cativeiro até a
demissão da Secretaria de Polícia "por turbulento e sedicioso". A
turbulência consistia em "promover processos em favor de pessoas livres
criminosamente escravizadas" porque "detesto o cativeiro e todos os
senhores, principalmente os Reis".
Gama ressuscitou lei que "não tinha pegado", a de
7 de novembro de 1831, que declarava livres todos os escravos introduzidos a
partir daquela data. Como se tratava da quase totalidade dos escravos
existentes, sua simples aplicação teria sido uma revolução, liquidando
praticamente a escravatura.
Não fosse, é claro, a dificuldade de vencer a parcialidade e
má vontade de juízes e governo identificados com os senhores. Essa é, portanto,
a segunda constante da vida do rábula, do prático que nunca pisou academia, mas
foi o maior advogado do Brasil: ter colocado todo seu conhecimento de Direito a
serviço da liberdade de escravos que não tinham como pagá-lo.
Sílvio Romero o consagrou como "o mais apaixonado, o
mais entusiasta, o mais sincero abolicionista brasileiro." Seu maior
título de glória, porém, é o que fixou no fecho da carta autobiográfica:
"Saí para o foro e para a tribuna, onde ganho o pão para mim e para os
meus, que são todos os pobres, todos os infelizes, e para os míseros escravos,
que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras do crime". Uma
história gloriosamente verdadeira e bem superior à do filme.
Fonte: Rubens Ricupero, “Folha de S. Paulo”, Mundo, 3/4/14.
Em tempo: postei o texto na íntegra, e não apenas dois
parágrafos, como recomendado pela “Folha”, porque este blog é meramente
pessoal, sem nenhuma finalidade comercial, e acima de tudo porque a história
merece.
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