"Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não
os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada
sete horas de chumbo."
"E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade
quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma
coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele
lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco."
(Trechos de “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo)
Dia desses recebi uma missão difícil: ir para uma das duas
maiores favelas de São Paulo, Paraisópolis, na zona sul, e retratar a
comunidade.
A base da reportagem era o livro do jornalista Vagner de Alencar, “Cidade do paraíso – Há vida na maior favela de São Paulo”.
Missão quase impossível captar imagens e histórias em menos
de três horas para retratar em dois minutos de reportagem uma comunidade onde
vivem de 60 mil pessoas, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) a 100 mil, de acordo com moradores.
Mais que isto: retratar uma comunidade das mais complexas,
formada por uma ampla maioria de gente trabalhadora e do bem, grande parte migrante
do Nordeste, um lugar também conhecido nacionalmente pelo domínio do tráfico e pela
criminalidade (quem mora em São Paulo conhece bem o temor de passar “pela ladeira
de Paraisópolis”, na região da avenida Giovanni Gronchi).
Um aparte: talvez nenhum outro lugar exponha de modo tão cru a desigualdade brasileira quanto Paraisópolis. A favela está ao lado, literalmente, a uma rua, de condomínios de luxo do bairro do Morumbi, prédios onde chega a haver uma piscina por apartamento.
E lá fui eu, subindo ladeiras, entrando em becos e vielas,
subindo as dezenas de degraus que levam de uma casa para outra e para outra e
para outra, tal qual um edifício improvisado, feito laje sobre laje, estas vendidas
ou alugadas tal qual um terreno. E até sobre a laje fui parar depois de
recorrer a uma escada capenga de madeira e passar por um buraco pequeno que
levava ao telhado.
Ouvi histórias simples, histórias incrivelmente ricas, vi gente
feliz, gente que confessou querer ir embora dali, acima de tudo gente.
Na viela da Alegria, escura e úmida, o grupo de meninos agia
como uma espécie de “guia”. “Corta pra mim!”, disse um dos mais novinhos,
entoando bordão famoso na voz do jornalista Marcelo Rezende, que comanda o noticiário
policial da TV Record, “Cidade Alerta”.
- Olha, tio, ele tem um dedo a mais!, exclamou um outro garoto.
- Nossa, é mesmo. Você é então o campeão de toda a turma,
quem mais tem dedos, seis dedos, disse eu.
- Eu não tenho seis dedos!, retrucou o garoto. Tenho onze!!!
No lugar onde comprei uma coxinha por R$ 1,50 (foi o almoço daquela manhã/tarde que se estendeu além do horário), ouvi a
história de um homem sorridente que acabara de se realizar na vida ao largar
dez anos de trabalho como empregado para se tornar patrão: a garagem alugada virou
um bar/restaurante. “Está dando para pagar as contas”, falou.
Ali mesmo, um outro homem exibindo seu conjunto de
tatuagens, gíria típica da periferia paulistana, aproximou-se inquisidor: “E aí
mano, qual é a pegada?”. Expliquei que estávamos ali para uma reportagem sobre
a vida em Paraisópolis. Ele abandonou o ar bravio e iniciou uma amistosa
conversa. Explicou que a garagem agora bar pertencia ao pai dele, que acabara de
alugar para o “Gil”. Contou outras histórias dali. Sugeriu que gravássemos na
rua perpendicular, justamente o local para onde não deveríamos mirar nossa
câmera, segundo a recomendação ouvida minutos antes.
- Mas não é perigoso?, perguntei.
- Né, não, tranquilo.
- Mas não é ponto de tráfico?
- Tranquilo.
- Vocês se sentem seguros aqui?
- Claro! Normal.
- Mas o que a gente vê na TV então é exagerado?
- Lógico!
Diante do contraste de manifestações, retruquei ao
interlocutor que havia me recomendado cautela na rua agora indicada a fim de
saber se ela era mesmo insegura e a resposta foi elucidativa: “Com vocês não vão
fazer nada, mas depois vão querer saber porque eu estou levando a televisão
para lá. O risco é meu”.
A conversa mais estranha, marcada por uma aparente falta de
confiança (mútua?), foi justamente com quem deveria me guiar por Paraisópolis: um representante da associação de moradores (atenção: não se entra em nenhuma
favela sem estes seres). Foi também uma conversa reveladora sobre o que os
moradores chamam de lugar seguro. Segurança há, basta seguir as regras. E estas
são impostas não pelo Estado ou pela polícia e sim por quem de fato manda na
área.
- Antes de começarem a filmar, deixa eu avisar alguém que
vocês vão ficar circulando por aí.
- Você tem que avisar alguém? Quem?, perguntei, fazendo-me
de ingênuo.
- Eu vou avisar alguém!, respondeu meio rispidamente o
representante da associação.
Alguém que, como os milhares em Paraisópolis, vive anonimamente.
Em tempo: naturalmente, seria impossível retratar a complexidade de Paraisópolis nas condições que já mencionei, ainda assim gostei do resultado final da reportagem:
)
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