Jorge Rafael Videla, o maior símbolo da ditadura argentina
do período 1976/83, morreu onde devia mesmo morrer: na cadeia.
Não é o caso de fazer um balanço do que foi esse terrível
período da história argentina, prenhe, aliás, de períodos terríveis.
Só vou falar do medo, o medo tremendo que ditaduras injetam
no corpo e na alma até de quem, como eu, nem argentino sou.
Medo que começou quando a sucursal da Folha em
Brasília iniciou as gestões junto à embaixada argentina para que eu obtivesse o
visto de residência, já que havia sido designado correspondente do jornal em
"mi Buenos Aires querido".
Era 1980, Videla era o presidente de turno da ditadura. A
informação inicial foi a de que não me dariam o visto porque eu não era
jornalista, "era militante".
Não era exatamente mentira. Nunca militei em partido algum,
mas militava, sim, como voluntário em defesa dos direitos humanos, sob o
generoso guarda-chuva da Arquidiocese de São Paulo, então comandada por dom
Paulo Evaristo Arns.
Ser carimbado como militante pela ditadura argentina
equivalia quase a uma sentença de morte. Por isso, hesitei a princípio em
assumir o posto, ainda mais pelo risco a que exporia a família.
Mas acabei indo, torcendo para que o fato de ser
correspondente funcionasse como um habeas corpus preventivo, embora precário.
Funcionou em termos. Até que, um dado dia, apresenta-se em
meu apartamento Eduardo Pereyra Rossi (sem parentesco), um dos sete
"comandantes", como os Montoneros, o grupo peronista dedicado à luta
armada, chamava seus principais líderes.
Era um dos sete homens mais procurados pela máquina de matar
dos militares. Eduardo me fora apresentado em São Paulo, durante as férias, por
um amigo comum.
Conversamos um bom tempo. Ao despedir-se, me pediu que eu
observasse da sacada até que ele dobrasse a esquina. Se fosse preso antes, que
eu fizesse a denúncia.
Eduardo, naquele dia, dobrou a esquina, mas uns dez dias
depois, foi morto em um suposto "enfrentamiento".
Aí, começaram os problemas mais sérios. Primeiro, um roubo
no apartamento, quando estávamos todos fora, em que levaram notas de US$ 50 e
US$ 100, mas deixaram as de US$ 10. Você conhece ladrão comum que deixa notas
de dólar encontradas na mesma gaveta em que estavam as roubadas?
O objetivo era deixar a mensagem de que eu estava sendo
vigiado e podiam fazer o que quisessem. Após outro episódio similar, chamamos a
polícia, que, porém, não procurou impressões digitais nas portas, alegando que
em portas de madeira não ficam impressões digitais.
Depois, começou o seguimento na rua. Notei que um baixinho
gordinho aparecia frequentemente em locais a que eu ia. Um dado dia, apareceu
na porta da galeria em que ficava a lavanderia a que eu levava a roupa (a
família estava de férias no Brasil).
Depois, reapareceu na estação do metrô perto de casa, e
desceu na mesma estação que eu. Eu havia marcado encontro com um advogado
(comunista) da Liga dos Direitos do Homem, num café da praça Lavalle, no
centro.
Entrei no café, sentei e, pelos janelões, vi que ao baixinho
gordinho se juntara um mais alto, espigado, de óculos escuros, bolsa tipo
capanga embaixo do braço. Ficaram olhando para o café, e eu olhando para eles.
O advogado não apareceu. Deduzi que havia sido preso, que
meu nome e telefone estavam na agenda dele e por isso eu estava sendo seguido.
Saí depois de uma hora de espera. Quando dei meia volta após
um tumulto qualquer na pracinha, dei de cara com o baixinho gordinho, que me
seguiu até o metrô.
Pouco mais tarde, vou almoçar no café da esquina de casa.
Não demora e entram o baixinho gordinho e o da bolsa capanga. Não consigo
comer, já aterrorizado.
Vou à sede da Liga dos Direitos do Homem, saber do meu amigo
advogado. Não estava, não aparecia havia dias. Parecia confirmar-se a minha
dedução sobre sua prisão.
Desço e, no térreo, ao fechar a porta pantográfica do
elevador (prédio antigo, elevador antigo), dou de cara com um gigante de 2
metros de altura. Pensei: "Agora, engrossaram e mandaram um bem grandão
para me fazer desaparecer". Era apenas a minha imagem no espelho. O
episódio me ensinou o efeito devastador que o medo provoca, em situações que
você não pode controlar.
A Folha achou prudente antecipar viagem já
programada para a América Central para cobrir as guerras em andamento. Fui e
mesmo tendo caído em fogo cruzado em El Salvador, eu ao menos sabia quem era
quem e de onde vinha o perigo.
Na guerra argentina, o terror era promovido pelas sombras de
um Estado tomado por uma máquina de matar.
PS - Meu amigo advogado tinha apenas ido visitar a mãe
doente no interior.
Fonte: Clóvis Rossi, “Sofri o medo que as ditaduras injetam no corpo e na alma”, Folha
de S. Paulo, Mundo, 18/5/13.
PS: embora este blog
não tenha finalidade comercial, sigo a regra determinada pela “Folha”
- para preservar direitos autorais - a respeito da republicação de seu material
(dois parágrafos, com link para o original).
Neste caso, porém, dada a
importância do tema, decidi postar o texto na íntegra. Ele só é compreensível
se toda a história for contada.
Além disso, serve de lição para que NUNCA MAIS alguém seja perseguido, preso, torturado e morto apenas por exercer o sagrado
direito de discordar.
0 comentários:
Postar um comentário