Um amigo meu disse outro dia que adotou como esporte diário andar de bicicleta no rio. Pensei que ele tivesse mudado para o Rio de Janeiro e estivesse pedalando pela orla carioca. Mas, não, ele falava de outro rio, o Pinheiros, que corta uma das regiões mais ricas do Brasil e do mundo.
De fato, é difícil relacionar São Paulo aos seus rios hoje em dia. A cidade criou um verdadeiro apartheid fluvial. Os rios paulistanos foram emporcalhados, enclausurados e defenestrados. Ninguém os ouve, ninguém os vê -só seu mau cheiro é percebido, com repulsa. Os rios, aqui, se tornaram o avesso do símbolo de vida que são. Aqui, não inspiram nem respiram -amedrontam.
Só falamos dos nossos rios pelas piores razões: quando eles inundam comunidades na época das chuvas, quando eles tomam nossos narizes pelo mau cheiro, quando algum corpo é "desovado" em suas águas. Todo mundo tem medo de um dia, por acidente, cair num desses rios. Diz a lenda urbana que a morte é certa.
Grandes cidades se colocaram o desafio de limpar e de revitalizar seus rios para devolvê-los aos moradores. São Paulo tenta, já há muito tempo, limpá-los, e gastou uma montanha de dinheiro no processo, sem muito resultado. Mais do que dinheiro, faltou até aqui o envolvimento das pessoas, das comunidades e das empresas que formam esta cidade.
Mas agora, com a ciclovia do rio Pinheiros, uma coisa enorme aconteceu: foi feito contato. Pela primeira vez em décadas, um número grande de paulistanos tem contato direto com o rio, um contato transformador. Vendo o rio de tão perto, o desejo de limpá-lo só aumenta.
São mais de 20 km de pista reta para pedalar, que serpenteiam as zonas oeste e sul da cidade, partindo do parque Villa-Lobos e indo até Interlagos, sem carros ou semáforos. O número de acessos à ciclovia, encravada entre o rio Pinheiros e a linha de trem urbano e as marginais, ainda é pequeno, mas crescente. Ela começou com uma vocação maior de lazer do que de transporte urbano, mas isso também pode mudar.
Basta ver o trânsito na marginal e o aperto nos trens metropolitanos que passam vizinhos para perceber que a bicicleta pode ser a melhor opção de transporte naqueles trechos na hora do rush. Bolsões de bicicletas gratuitas nos acessos da ciclovia, patrocinados por empresas, podem estimular seu uso.
Quanto mais perto o paulistano estiver dos seus rios, mais perto estaremos de sua transformação em vias vivas e limpas da cidade.
O principal desse processo de revitalização é estimular a participação da população, por meios individuais, das empresas, dos órgãos públicos e de ONGs. As mídias sociais são armas novas talhadas para essa mobilização.
A participação da iniciativa cidadã e privada aqui (como em tudo) é crucial.
Vimos arranha-céus incríveis serem erguidos às margens do rio Pinheiros nos últimos anos. Muitos desses escritórios têm paredões de vidro com vista para o rio, que lá no alto não cheira nem fede. Essas torres abrigam boa parte das maiores empresas e a maior concentração de doutores do país. Eles certamente querem ajudar as autoridades a encontrar o caminho para revitalizar o rio que veem da janela.
É um daqueles atos perfeitos onde todos ganham: a revitalização do rio estimula ação comunitária, aumenta a mobilidade urbana e o acesso, sem necessidade, de mais carros, trilhos e ruas, cria desenvolvimento econômico, impede enchentes, preserva e restaura a natureza e estimula práticas sustentáveis.
A revitalização do rio deságua na revitalização de suas margens, uma área contínua com potencial quilométrico de lazer, de cultura e também econômico.
Se há algum benefício por estarmos atrasados nessa corrida para salvar os rios urbanos, é que existem muito modelos já aplicados pelo mundo com diferentes participações das empresas, desde desonerações até o uso comercial de áreas revitalizadas.
A ciclovia já é uma pequena amostra de todo esse potencial hidrourbanístico. É um primeiro braço do abraço que os paulistanos precisam dar nos seus rios.
Esse é um bom tema para estas eleições municipais e também para as reuniões de conselhos corporativos às margens do rio Pinheiros.
Fonte: Nizan Guanaes, "Viva o rio", Folha de S. Paulo, Mercado, 21/8/12.
quarta-feira, 22 de agosto de 2012 | Postado por Rodrigo Piscitelli às 20:52 |
A cidade e o rio
Marcadores: cidades, Nizan Guanaes, rio, urbanismo
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