(...) O carro faz parecer que existia outro personagem que
não o próprio condutor. Porém a lataria não pode ocultar o personagem e o
Renavam não pode esconder a habilitação. O insulfilm não tem como mascarar o
rosto e o deslocamento não tem como deixar para trás o que foi feito.
Porque fechar outro carro é como empurrar alguém no meio da
rua. Porque buzinar é como chegar e gritar no ouvido do outro. Porque acelerar
em direção a um pedestre é como levantar a mão em ameaça ao próximo. Porque
estacionar trancando o outro é produzir um cárcere privado. Porque ultrapassar
perigosamente é como sair armado.
(...) Sinal de que no carro somos outra pessoa, mais
perigosa. Sinal de que nossa consciência assume que tem menos responsabilidade
dentro do que fora dessa entidade.
O condutor é uma consciência e uma consciência é um bicho
vestido. As sensações de anonimato e de que o pequeno espaço de nossa
carroceria é privado fazem o bicho se despir como ele não faz do lado de fora.
E o que vemos pela cidade são respeitáveis senhores e senhoras como bichos
atrelados a um volante.
Dão vazão a violências que fora, vestidos, não dariam. Além
das agressões e abusos que produzem, saem dos seus carros piores pessoas diante
de suas próprias consciências. Seguem a rotina como se nada tivesse acontecido,
mas trouxeram para dentro de sua casa, de sua alma, marcas de pneus. (...)
Fonte: Nilton Bonder, “Autoviolência”, Folha de S. Paulo,
Opinião, 14/4/13, p. 3.
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