Feita com carne de frango ou galinha, envolvida em massa, passada na farinha e dourada em óleo quente, a coxinha é unanimidade nacional. Já deveria ter sido internacionalizada, para o mundo descobrir o que sabemos: quando bem preparada, supera em sedução o bolinho de bacalhau, o pastel, o quibe, a esfiha, etc. Mas, apesar de consumida por milhões de fregueses de padarias, bares e estabelecimentos afins, não há consenso em torno dela.
A coxinha creme, ou seja, a feita com a coxa inteira, deve incluir a sobrecoxa para virar refeição completa? E a que chamamos apenas coxinha, à base de carne desfiada ou picada na faca, pode incorporar esse ingrediente moído? A massa leva só farinha de trigo e de rosca ou comporta a batata? Aceita-se uma camada interna de Catupiry, para o queijo "vazar queixo abaixo", na opinião divertida do jornalista Humberto Werneck, ou esse ingrediente é herético?
Outra discussão envolve a origem da coxinha. Velhas padarias, bares e confeitarias de São Paulo e do Rio de Janeiro disputam sua primazia, mas não comprovam o feito. Ultimamente, espalha-se a lenda de que a receita surgiu em Limeira, a 154 quilômetros da capital paulista. Diz-se que um dos filhos da princesa d. Isabel viveu certo tempo em uma fazenda do município, no final do século 19. Era mantido longe da corte por deficiência mental. Enjoado à mesa, só comia coxas de galinha, fritas de maneira simples, ou seja, sem empanar. Não havia ave que chegasse.
Um dia a cozinheira desfiou toda a carne de um frango, dividiu-a em porções, envolveu-a em massa, moldando-a no formato de pera e depois a fritou. O rapaz adorou! Sua mãe aprovou a novidade quando visitou Limeira em 1886. A versão foi contada por Maria Nadir Galante Cavazin no simpático livro Histórias e Receitas - Sabor, Tradição, Arte, Vida e Magia (Sociedade Pró-Memória de Limeira, 2000). Entretanto, não passa de ficção. Todos os filhos da princesa d. Isabel moravam com ela no Rio de Janeiro e eram saudáveis.
A herdeira do trono do Brasil devia conhecer a coxinha, que pode ter aportado no País em 1808, quando sua trisavó, a rainha d. Maria I, e seu bisavô, o príncipe regente d. João, escaparam das tropas de Napoleão e e instalaram o governo lusitano no Brasil. "A origem da receita é claramente francesa", assegura em São Paulo o chef Laurent Suaudeau. Sua afirmação se apoia na obra do chef Antonin Carême (1784-1833). Nas páginas 268, 269 e 270 do livro L"Art de la Cuisine Française au XIXème Siécle - Traité des Entrées Chaudes (Dentu, Librairie, Palais-Royal, Galerie d"Orléans, Paris, 1844), o maior cozinheiro de todos os tempos chama a coxinha de "croquette de poulet" (croquete de frango) e aconselha moldá-la "em forme de poires" (no formato de peras). "Obviamente, a receita foi modificada no Brasil", diz Laurent. "Mas, do ponto de vista técnico, é a mesma."
A coxinha parece ter estreado em Portugal na corte de d. Maria I (1734-1816), a rainha lá conhecida como "a Piedosa" e aqui, como a vimos desembarcar demente, por "a Louca". Quando ainda tinha equilíbrio mental, era uma mulher inteligente, educada, culta e requintada, que apreciava literatura, música, pintura, decoração e sabia comer bem. Para cuidar da sua cozinha, contratou os serviços do chef francês Lucas Rigaud, um profissional qualificado que se exercitara em Paris, Londres, Turim, Nápoles e Madri.
Ele publicou em 1780, na capital portuguesa, o livro Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha, reeditado em 1999 pela Colares Editora, de Sintra, Portugal. Nas páginas 107 e 108 da última edição há a receita de "coxas de frangas ou galinhas novas". Desossam-se 10 ou 12 aves, conservando a pele, e se recheia com um "picado fino". Mergulha-se no béchamel (molho branco) ligado com gemas. Fecha-se com barbante, passa-se em ovos batidos, pão ralado fino e frita-se em banha. Qualquer semelhança com a coxinha brasileira não é mera coincidência.
Fonte: Dias Lopes, “Da bagagem real para o boteco”, O Estado de S. Paulo, Paladar, 11/8/11.
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