(...) O texto não estava suficientemente descolado da
realidade para que todos percebessem a impossibilidade de ser literal?
Talvez, infelizmente, não: fui menos grosseiro, violento e
delirante na sátira do que muitos têm sido a sério. Poucos dias antes da
crônica ser publicada, um vereador afirmou em discurso que os mendigos deveriam
virar "ração pra peixe". Com esse pano de fundo, ser
"apenas" racista, machista, homo e demofóbico pode não soar absurdo.
Quem se chocou achou o personagem equivocado, mas plausível. Quem me
cumprimentou achou minha "análise" perfeitamente coerente. Ora, só dá
para concordar com o texto se você acreditar que as cotas criaram uma elite
negra e oprimiram os brancos, acabando com a "meritocracia que reinava por
estes costados desde a chegada de Cabral", se achar que os 20 anos de
ditadura foram "20 anos de paz" e que é legítimo e bem-vindo
levantar-se contra "as bichas" e "o crioléu".
Em "Hanna e Suas Irmãs", do Woody Allen, Lee, uma
das irmãs, é casada com um intelectual rabugento chamado Frederick. Lá pelas
tantas, o personagem assiste a um documentário sobre Auschwitz, em que o
narrador indaga "como isso foi possível?". Frederick bufa e resmunga:
"A pergunta não é essa! Do jeito que as pessoas são, a pergunta é: como
não acontece mais vezes?". Esta semana, diante dos e-mails elogiosos que
recebi, a fala me voltou algumas vezes à memória: "Como não acontece mais
vezes?". Vontade é o que não falta, por aí - e, infelizmente, não estou
sendo irônico.
Fonte: Antonio Prata, “Abaixo, a ironia”, Folha de S. Paulo,
Cotidiano, 10/11/13 (íntegra aqui).
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