(...) Gosto de viver em cidades porque gosto de caminhar em
cidades. Também aqui sou o anti-Rousseau por excelência. No seu "Devaneios
do Caminhante Solitário", o filósofo confessa que existem poucos prazeres
comparáveis a uma caminhada pelo campo. Subscrevo tudo, exceto o campo.
Cidades. Carros que passam. Esse é o meu filme. E, por falar
em filmes, haverá caminhada mais bela do que no filme "Paris", de
Cédric Klapisch, que talvez explique as minhas paixões pela vadiagem urbana?
O filme tem duas histórias paralelas. A primeira é a de um
professor (o sempre magistral Fabrice Luchini) que se apaixona por uma aluna e,
sem surpresas, é abandonado por ela. Um solitário angustiado que gosta de
caminhar pelas ruas de Paris sem nunca se aperceber desse fato redentor: o fato
de estar vivo e de poder caminhar por Paris.
Pierre é o segundo personagem da segunda história. Doente,
gravemente doente, ele regressa para a casa da irmã (Julliete Binoche,
"mon amour") por não ter onde ficar até a hora de um transplante
salvador.
A irmã acolhe-o. E, no final, quando a hora chega, eles
despedem-se por imposição de Pierre e o táxi parte pelas ruas de Paris. A
caminho do hospital.
É esse o momento em que o professor e Pierre se encontram. O
primeiro, caminhante meditativo, perdido como sempre nas suas tristezas
mundanas. E o segundo, que olha para ele através do vidro do carro, invejando o
destino daquele pobre diabo. Invejando o luxo que é caminhar por Paris - sem
hora, sem rumo. Sem cirurgia marcada.
Não sei quantas vezes penso nessa sequência quando caminho
por Lisboa com o peso dos meus pequenos dramas. Mas também reparo que há carros
que passam por mim. E rostos que olham para mim. Não sei o que dizem. Não sei
em que pensam.
Mas suspeito que talvez um dia alguém passará por aquele
pobre diabo, invejando a sorte que ele tem por simplesmente caminhar pela
cidade.
Fonte: João Pereira Coutinho, “Devaneios sobre a ociosidade”, Folha de
S. Paulo, Ilustrada, 1/10/13.
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