terça-feira, 24 de maio de 2011 | |

Relatos de um Brasil selvagem

Acabei de ler uma obra histórica sobre a formação do Brasil. Trata-se do relato de Hans Staden, aventureiro alemão que se embrenhou pelo até então selvagem território brasileiro em meados do século 16, entre 1548 e 1556. Foram duas viagens a partir da Europa, uma delas com portugueses e a outra com espanhóis.

Nas duas ocasiões, Staden teve contato com os povos ditos primitivos que dominavam o solo da nação recém-descoberta. Em seu livro, ele conta como eram e viviam os “selvagens” – tupiniquins, tupinambás, etc. Os relatos impressionam pela riqueza de detalhes e por revelar a precariedade - sob o ponto de vista do Ocidente - da terra ainda nascente.

O livro vale não só pelo aspecto histórico. Do ponto de vista antropológico, é um tesouro! Onde mais se leria com tanta objetividade um aspecto controverso dos povos indígenas que habitavam o Brasil, a antropofagia (ou  canibalismo)?

“Nisto, o algoz golpeia o prisioneiro na nuca, de forma que lhe jorre o cérebro. Imediatamente, as mulheres pegam o morto, arrastam-no para cima da fogueira, arrancam toda a sua pele, deixam-no inteiramente branco e tapam seu traseiro para que nada lhe escape.

Depois que a pele foi limpa, um homem o segura e lhe corta as pernas acima dos joelhos e os braços rente ao tronco. Aproximam-se, então, as quatro mulheres, pegam os quatro pedaços, andam ao redor das cabanas e fazem uma grande gritaria de contentamento. A seguir separam as costas junto com o traseiro da parte dianteira. Dividem tudo entre si. As vísceras ficam com as mulheres. Fervem-nas, e com o caldo fazem uma massa fina chamada mingau, que elas e as crianças sorvem. As mulheres comem as vísceras, da mesma forma que a carne da cabeça. O cérebro, a língua e o que mais as crianças puderem apreciar, elas comem. Quando tudo tiver sido dividido, voltam para casa, e cada um leva seu pedaço.” (Duas viagens ao Brasil, RS: L&PM, 2008, p. 165-6).

Um outro aspecto chama a atenção na obra: a exploração do território brasileiro. Embora seja um fato bastante conhecido dos historiadores, poucas vezes se viu um relato tão nítido de um país colônia àquela altura ainda aparentemente sem dono. Além de portugueses, são frequentes as manifestações de Staden sobre navios espanhóis e franceses na costa brasileira fazendo escambo com os índios. Davam tesoura e espelhos, por exemplo, em troca de especiarias (como pimenta), pau brasil e até animais (como macacos).

Da parte dos portugueses, a exploração é mais do que sabida. Que os espanhóis passaram por aqui também é evidente. Que franceses e holandeses disputaram territórios no Nordeste é fato. Agora que a presença francesa, por exemplo, tenha sido tão frequente (Staden faz vários relatos) no litoral paulista, onde o viajante alemão viveu por cerca de dois anos (nove meses prisioneiro dos tupinambás), chama a atenção.

PS: é curioso ler num livro publicado pela primeira vez em 1557 aspectos ainda hoje conhecidos do nosso litoral, com descrições de fortificações e lugares que os brasileiros visitam quase 500 anos depois, como São Vicente, São Sebastião, Ubatuba e Bertioga. Locais turísticos, estavam todos lá, repletos de “selvagens”, na formação do Brasil.

* Imagens retiradas da Internet, reprodução do original do livro.

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