Já escrevi neste blog sobre a necessidade de ousadia e coragem dos administradores públicos para mudar a realidade das nossas cidades, de Limeira a São Paulo (e em várias outras mundo afora).
Retomo o assunto em razão de uma recente reportagem que li sobre mudanças no urbanismo de Paris. A reportagem, brilhantemente redigida, ilustra bem o que falei sobre "ousadia" e "coragem". Por isto, reproduzo-a a seguir. Vale a pena!
***
O Sena, que corta Paris, é um rio ideal. Ele não é tão largo e profundo
quanto o londrino Tâmisa, e está longe de exibir a vastidão marinha do lisboeta
Tejo. Comparado ao Tibre, que serpenteia por Roma como um velho cansado,
aparenta a vivacidade de uma história recém-começada, mas sem a volubilidade do
Danúbio colecionador das capitais Viena, Budapeste, Bratislava e Belgrado
(esclareça-se que os demais regaços urbanos do rio de Paris são mera
contingência hidrográfica). O Sena é ideal porque proporcional ao magnífico e
ao romântico, ao transporte fluvial e aos arrebatamentos de uma caminhada, à
alegria dos apaixonados e à tristeza dos realistas, como Honoré de Balzac, o
romancista, que o considerava tão somente uma tentação para o suicídio. Em suas
margens, direita e esquerda, aportaram palácios, museus, pontes monumentais,
pontes arquetípicas e barraquinhas de sebos resistentes à era digital. Essa
visão ganhará em meados de junho, se tudo sair de acordo com o previsto, outro
contorno encantador, para usar um daqueles clichês que só Paris permite.
Trata-se de um parque esportivo e cultural de 2,3 quilômetros de extensão, logo
ali, próximo às águas que, nesta primavera fria, correm mais caudalosas do que
na do ano passado, e na penúltima, e na anterior a essa, e por aí vai.
O rio de Paris apresenta dois níveis de orla – o dos quais, ou
cais, mais altos, interligados pelas pontes e onde trafega o grosso dos carros,
e o das berges, as margens propriamente ditas, descontínuas, coladas
ao leito do Sena e, algumas delas, ancoradouros dos barcos turísticos hoje
apinhados de chineses que, em terra, vagam pelos bulevares em chinelos. Boa
parte das berges, com pouco espaço destinado a quem se move a sola,
funciona como rota alternativa ao trânsito pesado dos quais. O
novo parque representa uma mudança nessa lógica, ao abolir os carros de uma
bela porção de beira de rio. Localizado no lado esquerdo do Sena, ele cobrirá a
distância que vai da Ponte de l’Alma, perto do túnel onde a princesa Diana
morreu, à Ponte Royal, que leva ao Louvre.
O parque foi projetado para que uma multidão use a pista
dedicada às corridas perpétuas contra a gordura, o stress, a morte
cardiovascular, O parque foi concebido para que abrigue um jardim flutuante,
composto de cinco ilhas artificiais. O parque foi pensado para que, na altura
da monumental Ponte Alexandre III, sirva de palco a manifestações artísticas –
que, espera-se, não signifiquem apenas algazarras multiculturais. Consta do
cardápio um restaurante vizinho que… terá igualmente programação artística. Melhor
pular esse trecho. Continuando: o parque foi imaginado para que, quase em
frente ao Museu d’Orsay, abrigo da maior e melhor coleção de pinturas
impressionistas do mundo, uma escadaria conecte margem e cais. Nas noites de
verão, principalmente, ela se transformará em arquibancada de um cinema ao ar
livre, o telão colocado sobre o rio, adaptação parisiense do extinto costume
das vilas do interior. O parque foi imaginado, não menos importante, para que
se veja o rio passar.
Integrar ainda mais o Sena à vida da cidade, e preservá-lo
da degradação do trânsito, é a cruzada do prefeito socialista Bertrand Delanoë.
Em “berges” da direita, foram realizadas reformas no ano passado. Para a raiva
dos motoristas, afunilou-se a via asfaltada, ampliou-se um calçadão e construiu-se
um jardinzinho perto do Hotel de Ville. Simpático, com uma vista linda. Em
2002, em seu primeiro mandato, Delanoë decidiu interditar um trecho do mesmo
lado do rio, para criar a Paris Plage – um montinho de areia, com palmeirinhas
e chuveiros, que nos verões é usado, conceda-se, como praia. As medidas do
prefeito atravancaram os “quais”, embora a administração municipal tente negar
a evidência. É verdade que Paris conta com um sistema de transporte público
eficiente. No entanto, por causa dos preços impraticáveis dos imóveis, muita
gente se mudou para os arredores – e passou a pegar o automóvel para trabalhar
na cidade, já que a malha de trens não dá conta desse novo público. Entre o
Sena e os carros, Delanoë escolheu o rio. Fez a opção certa. Que, mais dia,
menos dia, se desatem os nós de trânsito, não importa o preço. O Sena é o rio
ideal.
Fonte: Mario Sabino, “Paris ainda mais perto do Sena”, Veja,
ed. 2.323, ano 46, número 22, 29/5/13, p. 108-12.
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