segunda-feira, 7 de junho de 2010 | |

As "entranhas" norte-americanas

Os Estados Unidos são um país diverso. Tal como o Brasil. E não podia ser diferente: são duas das maiores extensões territoriais do globo. Assim, falar em “american way of life” ou em “american dream” pode soar estranho. Aparenta uma unidade que muitas vezes não se confirma na prática.

No campo político, mais do que unidade, o que se tem é divisão. Republicanos e democratas (só para ficar nos partidos dominantes) têm posições conflitantes sobre assuntos diversos, que vão da economia à guerra e ao aborto (todos temas caros aos norte-americanos).

Não pretendo discorrer sobre a política americana. Especialistas fazem isso muito melhor. Só não quero ignorar um fenômeno que está ocorrendo na terra do Tio Sam - e que por acaso me parece ligado intimamente à nova realidade política do país.

Não se sabe se em razão do desastre econômico recente ou do governo George W. Bush, o fato é que a histórica ascensão ao poder do primeiro presidente negro dos EUA causou um impacto extremamente positivo e um fio de esperança em muitas pessoas, mas ao mesmo tempo parece ter despertado um raivoso reacionismo da ultradireita norte-americana. E os reflexos disso estão por todo lado.

Estive nos EUA em setembro de 2009. No noticiário, surgiam as primeiras “acusações” de que o presidente Barack Obama seria “comunista” - muito disso fruto da reforma no sistema de saúde proposta por ele. Paralelamente, Obama fez naqueles dias um pronunciamento aos estudantes, via Internet. Era o “back-to-school message”, uma mensagem de boas-vindas na volta às aulas (algo que não ocorria desde 1991).

A fala motivou um debate acalorado. Em muitos lugares, pais proibiram os filhos de irem à escola no tal dia do pronunciamento. Muitas escolas não transmitiram a fala presidencial. Tudo porque “temiam” que o presidente usasse a rede para transmitir ideias “comunistas”.

Não foi à toa que a manchete do
“Richmond Free Press” de 10-12 de setembro foi: “Presidente fala – e estudantes ouvem”.

“Richmond foi o único distrito escolar na região onde os alunos puderam ouvir o discurso após a polêmica liderada (...) por apresentadores de TV conservadores, que procuraram torpedear o discurso antes que ele fosse feito.

A maioria dos outros distritos escolares (...) escolheu não apresentar o discurso do presidente (...).

Nesta área, Goochland e Henrico foram os outros únicos distritos a permitir a transmissão. No entanto, em Goochland, os professores foram autorizados a tomar a decisão e alguns não mostraram o discurso. Em Henrico, os professores foram informados de que deviam (...) obter permissão dos pais antes de deixar que os alunos vissem o presidente falar; alguns não conseguiram a permissão.

O discurso foi ignorado nas escolas de Chesterfield, Charles City, Colonial Heights, Hanover, New Kent, Petersburg e Powhatan.”

A fala presidencial ainda dominou a página de opinião do jornal, com dois artigos (“Misericórdia! Receios de Obama, a educação” e “Obama critica a falta de educação”), e a seção de cartas dos leitores (“Nós aplaudimos Obama por estimular os estudantes”). “Aqueles que se opõem à mensagem do presidente são incapazes de aceitar a mudança”, escreveu Patricia Brown. “A oposição (de alguns pais e diretores) à mensagem de Obama tem mais a ver com ódio e política”, citou Stuart Spears, ambos de Richmond.

B.J. Carter, de Henrico, tocou na ferida: “Minha pergunta sobre a reação amarga ao discurso do presidente aos estudantes é: se a mesma mensagem tivesse sido feita por algum dos últimos presidentes, haveria tamanho alvoroço? Ou isso é um anti-Obamismo relacionado ao fato de que o tom da pele do atual presidente é permanente e não obtido a partir de um salão de bronzeamento ou loção bronzeadora?”

A polêmica em torno do discurso parece besteira, mas para quem conhece a sociedade americana e o peso que ela dá a certos rituais, sabe que não foi pouco. Começava a se materializar a tal reação conservadora.

A questão apareceu também na tradicional revista “New Yorker” de 21 de setembro de 2009. No artigo
“Mentiras” da seção “The Talk of the Town - Comment”, o editor sênior Hendrick Hertzberg citou que “mentiras e fantasias sobre a reforma do sistema de saúde apareceram juntas com mentiras e fantasias sobre o próprio chefe do Executivo. Obama está planejando criar painéis da morte, tribunais oficiais para autorizar a eutanásia em idosos e doentes. Obama nasceu no Quênia e, portanto, sua presidência é inconstitucional. Obama vai cortar benefícios do Medicare para fornecer cobertura a estrangeiros ilegais. Obama tenta doutrinar as crianças na ideologia Marxista e colocar os adolescentes em ‘campos de reeducação’. Obama é Comunista. Obama é Fascista".

Para Hertzberg, trata-se de um tipo de “paranoia lunática - movida pelo populismo, nativismo, racismo e anti-intelectualismo”, comum em “tempos de confusão econômica”. Como instrumento, ele identifica uma “conservadora aliança construída em torno de meios de comunicação”.

Chamou-me a atenção também manifestações de leitores num jornal a respeito de uma situação que ocorria nas escolas. Bullying. Contra imigrantes. Um problema reforçado pelo texto que li recentemente no blog de Isabelle Biajoni, fato que gerou uma postagem neste blog (leia aqui).

E mais um indicativo de que algo de estranho ocorre nas escolas americanas foi dado pelo repórter Flávio Fachel, da TV Globo, via Twitter. Recém-chegado a Nova York, onde deve ficar pelo menos até 2012 como correspondente, ele escreveu que “a divisão entre americanos brancos, negros, hispânicos, asiáticos e latinos nas escolas salta aos olhos...”.

“Coisas de NY: na hora de escolher a ‘high school’, pais levam em conta a quantidade de alunos brancos, negros, latinos e asiáticos na escola. Dêem uma olhada no site insideschools.org. Esse é um site independente que orienta os pais na escolha das escolas. Uma das características apresentadas é ‘ethnicity’. A cultura local. Aqui, latino é meio ‘segunda categoria’.”

Outro repórter da Globo, Rodrigo Alvarez, correspondente na Costa Oeste, fez - também via Twitter – uma constatação: “a chegada de Obama no pós-crise fez renascer espíritos extremistas num país que sempre foi à direita do mundo, mas próximo ao centro”.

Ele cita como o talvez maior exemplo disso a recente lei anti-imigração aprovada no estado do Arizona. “O país dos imigrantes vai caçar imigrantes ilegais. Lei assinada agora. Criticada por Obama. Celebrada pela direita raivosa. Andar no Arizona sem documento de imigração será crime. Sair do hotel sem passaporte pode dar cana. E tem mais... Arbitrariedades à vista: a polícia do Arizona vai poder deter qualquer um que considerar suspeito de ser imigrante ilegal”, escreveu.

Para Alvarez, este “é mais um sinal da grande virada à direita na ideologia americana”. Segundo ele, as chamadas “tea parties” crescem. “São encontros de radicais, onde cresce a liderança de radicais de direita como a ex-governadora Sarah Palin (do Alasca) e o radialista Glenn Beck. A lei do Arizona foi apoiada pelo ex-candidato à presidência John McCain. Um homem de centro, pressionado pela necessidade política. Um tuiteiro disse, curiosamente: o Arizona é onde o Oeste encontra o Sul profundo. O sul profundo, pra quem não lembra, é a América racista”.

Ainda conforme Alvarez, a questão que ganha força é: “quanto disso é ‘reação’ a um presidente negro? Quanto desse renascimento da direita não é ‘reacionário’? O crescimento nada silencioso da direita não-politizada. O cidadão comum que leva arma pro comício”.

E ele não parece otimista. “Ando muito por esse país. Conheço bem o Arizona. Conversei com muitos imigrantes. Conheci policiais da fronteira. Não imagino coisa boa. Na região de Boston, aqui no Nordeste, muitos brasileiros reportam um crescente abuso no tratamento da polícia. Falam em perseguição. O clima não é bom desde Bush. Mas as ações exageradas da polícia eram reprimidas. O Arizona institucionaliza a ação ‘preventiva’. Racismo?”, questiona.

O fato chama ainda mais a atenção se relembrarmos a história dos EUA, uma nação construída por imigrantes. “Descendentes de italiano? De Niro, Di Caprio... O Arizona muda a trajetória”, citou Alvarez.

Em tempo: para quem quiser saber mais sobre este assunto complexo, recomendo a leitura do livro de Alvarez “O país de Obama”. Imperdível!

* A imagem do pedinte americano foi feita pelo repórter Rodrigo Bocardi; a do protesto contra a lei do Arizona é do cinegrafista Orlando Moreira. Ambos atuam na Rede Globo em Nova York.


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