Sou velho o bastante para não precisar do YouTube para
reviver a mágica do Brasil na Copa de 1970. Tenho as imagens gravadas na
cabeça. A sutileza de Tostão, a exuberância de Jairzinho, a fúria alegre de
Rivellino, o gênio felino de Pelé, a mente sinfônica de Gérson. Consigo ver, agora
mesmo, o gol que Carlos Alberto marcou na final contra a Itália, Clodoaldo
superando quatro jogadores em seu campo de defesa, passando a bola para
Rivellino, que a dá a Jairzinho, que a bate para Pelé, que a desliza, tão
casualmente como um leão lambendo a pata, para Carlos Alberto, que a atira na
rede com força imbatível. E tanto, tanto mais, especialmente as gloriosas,
espetacularmente inventivas e inesquecíveis bombas de Pelé que por pouco não
acertaram o alvo contra o Uruguai e a Checoslováquia.
Não importa sua idade, não importa onde tenha nascido, se
você leva a sério o futebol, terá visto imagens em preto e branco do Brasil
vencendo a Copa do Mundo em 1958 e 1962, do time que deveria ter ganhado em
1982, mas, cruelmente, não o fez. Nomes como Garrincha, Sócrates, Zico, Ronaldo
e Ronaldinho evocam sorrisos instantâneos de Madagascar a Manchester, da Cidade
do Cabo à Cidade do México. Todos sabem o significado das duas palavras
brasileiras "jogo bonito", e, mesmo que o Brasil já não apareça há
algum tempo com um time que emocione o mundo como a seleção fazia, nunca
perdemos a fé. Vimos o surgimento de um jogador como Neymar e ansiamos por
acreditar que, mais uma vez, o Brasil iluminará o planeta, surpreendendo-nos
com novas variações inimagináveis do velho, velho jogo.
Falava sobre isso outro dia com um amigo na cidade onde o
jogo foi inventado, há um século e meio. Estávamos em uma rua de Londres e
chovia, mas nosso entusiasmo era tamanho que não percebemos que começávamos a
ficar molhados. "Mesmo quando eles são uma porcaria, nós os
adoramos!", exclamou meu amigo. "O Brasil é sempre o segundo time de
todo mundo em uma Copa." Foi por isso que nós dois ficamos alarmados com a
notícia que vínhamos escutando havia algum tempo de que um número grande de brasileiros
teria preferido que seu país não sediasse o torneio no ano que vem, que alguns
estariam planejando realizar protestos — até tumultos — quando os jogos
começassem. Como isso pode acontecer? O futebol é o maior fenômeno social da
humanidade, o principal tema das conversas planetárias, e, fora das fronteiras
do Brasil, o consenso é absoluto: não pode haver lugar mais adequado para
celebrar a maior festa de futebol do mundo.
O que virá a seguir — Rússia, Catar — dificilmente provoca
vibração. A Rússia é um país sombrio, com influências ocultas e desagradáveis
de racismo e homofobia. Mas pelo menos tem uma tradição futebolística, ao
contrário do Catar, que tem areia e dinheiro, gás e petróleo, mas pouco mais
para excitar a alma. A Fifa parece estar fazendo o possível para destruir a
Copa do Mundo; Brasil 2014 nos dá a esperança de que o evento sobreviverá
fornecendo-nos o oxigênio necessário para manter a chama acesa além de 2022.
Claro, não é absurdo argumentar que o dinheiro dos estádios,
os novos e os reformados, poderia ser mais bem gasto em escolas, hospitais e no
transporte público. Mas razão não é o ponto aqui, da mesma maneira que não o é
quando você decide convidar uma centena de pessoas para o casamento de sua
filha. A fria lógica financeira diz que seria mais sábio esquecer a festa e
comprar para o jovem casal um sofá, uma cama e utensílios de cozinha. Mas que
tipo de concepção de vida humana é essa? Vivemos e morremos, o mundo está
repleto de desapontamento, sofrimento e guerras, e, quando surge a oportunidade
de fazer algo memorável e grande, algo que pode unir não apenas um país, mas
toda a espécie humana, deixando uma feliz marca que permanecerá para sempre —
como aconteceu com a Copa do Mundo de 1970, no México —, então certamente
devemos aceitar isso com gratidão e alegria. A alternativa é comemorar a Copa
do Mundo todas as vezes no Catar, onde dinheiro não é problema, onde se pode
ter a certeza de que o povo nunca vai reclamar.
Isso não é alternativa, como sabem na África do Sul, onde
morei durante anos e onde tenho passado muito tempo ultimamente. Ainda há
alguns avarentos que insistem numa afirmação: sediar a Copa do Mundo ali em
2010 foi um desperdício criminoso de recursos estatais. Mas eles são uma elite
intelectual desconectada. A grande maioria dos sul-africanos, não importa se
vivem em casas com piscina ou em barracos de chapa ondulada, não julga a Copa
do Mundo segundo critérios financeiros. Eles a enxergaram como uma chance de
mostrar sua melhor face para o mundo, de se orgulhar de seu país, de convidar
pessoas de todas as panes e de se divertir muito. Se virar o foco feliz da
atenção mundial por um mês, se reforçar a marca nacional traria benefícios
econômicos duradouros para os sul-africanos, porque não? É quase impossível
quantificar tais coisas. O certo é que conceber sediar um evento de tal
magnitude, seja a Copa do Mundo, sejam os Jogos Olímpicos, como um investimento
econômico não é o curso inteligente. Você o faz porque quer fazê-lo, não porque
precise fazê-lo. Você o faz por seu valor inerente, não em função do lucro ou
prejuízo.
Se ainda há uma proporção significativa de brasileiros que,
por razões totalmente racionais, é contra sediar a Copa do Mundo em 2014, bem,
sinto muito. É tarde demais. O bonde já passou. Não há sentido em lamentações
estéreis, nenhuma vantagem em estragar a festa para o resto das pessoas. A Copa
é um presente do Brasil para a humanidade. Celebre-a com um sorriso generoso.
Nós vamos nos divertir, seremos eternamente gratos e, se tivermos sorte e Neymar
e companhia empregarem a mágica no velho modo brasileiro, nunca a esqueceremos.
Fonte: John Carlin, "Chega de lamentações estéreis", Veja, edição 2.351, ano 46, número 50, 11/12/13, p. 152-3.