Sempre tive horror a multidões. Não falo de multidões anônimas em cidades anônimas. Dessas gosto. De me perder nelas e com elas. Falo das outras: multidões politicamente organizadas, que suspendem o raciocínio para seguirem um líder e uma causa. Nelson Rodrigues dizia, com simplicidade avassaladora, que toda unanimidade é burra. Confirmo.
A culpa é minha. A culpa é do meio onde cresci. O meu pai era um liberal clássico. Liberal, não: libertário. Se a liberdade é o valor supremo da existência humana, qualquer limitação à liberdade seria objetivamente um dano. Drogas, prostituição, eutanásia o Estado que se afastasse. Só quando existe invasão da liberdade alheia deve o poder político intervir. Caso contrário, o indivíduo é soberano.
Não para a minha mãe, que sempre gostou de se apresentar, e de se olhar, como uma humanista de esquerda. Uma sociedade civilizada é uma sociedade capaz de cuidar dos mais pobres. O que implica a existência de um Estado sólido e generoso, capaz de distribuir a renda e garantir serviços básicos de decência.
E eu? Eu cresci entre os dois, escutando ambos e discordando de ambos. Sim, a liberdade é um dos valores fundamentais. Não é o valor fundamental, perante o qual todos os outros se vergam. Valores como a igualdade, a justiça ou a segurança podem ter prioridade, e muitas vezes têm, para garantir a sobrevivência de uma comunidade política.
O mesmo para a senhora minha mãe: uma sociedade deve cuidar dos mais fracos; mas não deve permitir que o poder político cresça de forma intolerável e potencialmente perigosa. O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente. Lord Acton "dixit".
Foi assim que me tornei um conservador pluralista e cético, avesso aos extremos e aos extremistas. E assim continuo: olho em volta e constato, sem surpresa, que os meus amigos se espalham generosamente pela esquerda e pela direita. Discordo muito deles. Mas, por causa deles, dou por mim a discordar várias vezes de mim próprio. Eles não existem para confirmar as minhas certezas. Eles existem para as testar. Malditos sejam. Abençoados sejam.
Agradeço-lhes publicamente. E agradeço também à revista "Spectator", que publicou artigo do cientista político Cass Sunstein que só reforça a minha gratidão. Sunstein publicou livro recente, intitulado "Going to Extremes: How Like Minds Unite and Divide" ("Ir aos Extremos: Como Mentes Semelhantes Unem e Dividem"). A tese é luminosa: pessoas que pertencem a grupos que pensam uniformemente da mesma forma tendem a radicalizar as suas posições.
Existem testes empíricos citados por Sunstein: na França, um grupo de cidadãos franceses foi dividido em grupos menores para trocarem opiniões sobre o presidente francês e o papel dos Estados Unidos no mundo. Ponto de partida: todos os cidadãos, antes da experiência, tinham visão simpática do presidente e visão negativa dos Estados Unidos. Ponto de chegada: depois da experiência, os que gostavam do presidente francês passaram a gostar ainda mais. Os que não gostavam dos Estados Unidos passaram a gostar ainda menos.
O segredo, conta Sunstein, está na própria dinâmica da troca de informação: quando os outros reforçam as nossas verdades, eles não se limitam a justificar epistemologicamente o que pensamos. Eles conferem uma sensação de maior segurança ao que pensamos, radicalizando as nossas atitudes. E basta que exista entre o grupo uma autoridade incontestada e incontestável para que o pensamento uniforme se transforme em ação uniforme. É a receita para o desastre.
A história do extremismo, para Sunstein, é também a história de como certos grupos foram se afastando progressivamente do pluralismo real das sociedades humanas. O Tratado de Versalhes, a falência de Weimar ou a Grande Depressão podem explicar Hitler e a ascensão do partido nazista. Não explicam tudo: é preciso entender os nazistas como um grupo homogêneo, impermeável à crítica externa. Uma realidade fechada onde os diferentes membros se reforçam mutuamente numa espécie de endogamia intelectual e ideológica. Nós, os puros, contra os inimigos impuros: eis a mentalidade típica do extremista. De ontem e de hoje.
Não se iludam. Um esquerdista faz sempre falta numa reunião de reacionários. Um direitista faz sempre falta numa passeata de Porto Alegre. Porque as sociedades livres, no essencial, não se distinguem dos casamentos felizes. E não há casamento que resista quando trocamos vozes distintas por monólogos entediantes.
De João Pereira Coutinho, publicado na "Folha de São Paulo" em 7/7/09, Ilustrada.
terça-feira, 7 de julho de 2009 | Postado por Rodrigo Piscitelli às 20:19 |
A unanimidade é burra
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