A crise chegou com tudo a Portugal. A antiga metrópole pede socorro. À antiga colônia, o Brasil. Ao mundo. Deixando de lado as agruras econômicas do povo, a situação não deixa de ser curiosa. Talvez este início de século 21 seja apenas a concretização de um processo iniciado 200 anos antes, com a transferência da família real de Lisboa para o Rio de Janeiro. Naquele momento, a então metrópole começava a perder importância política - a econômica já vinha sendo arranhada desde séculos antes.
Não vou discorrer aqui sobre a história de Portugal e do Brasil. Para saber mais sobre este processo, sobre o momento crucial em que a historia dos dois países se uniu e o destino de ambos mudou para sempre, recomendo a leitura dos dois livros do jornalista Laurentino Gomes, "1808" e "1822".
Quero falar do século 21. Notícias recentes vindas da corte, ou melhor, de Portugal, revelam uma situação dramática. Greves, desemprego altíssimo, renda em queda, déficit nas contas do país, falta de dinheiro. Fala-se abertamente, ainda que em tom de ironia, na anexação da antiga metrópole pelo Brasil. Obviamente, esta possibilidade não foi sequer cogitada nos círculos diplomáticos durante a recente visita da presidente Dilma Rousseff a Portugal, mas as vozes são ouvidas aqui e ali, nas ruas e nas páginas dos jornais.
Para a alma e o orgulho portugueses, trata-se de uma desfaçatez, uma desonra - como fora em 1807 a partida da corte para o Brasil fugindo das tropas de Napoleão. A verdade é que os portugueses nunca digeriram aquele episódio. Para muitos, dom João 6° não passa de um covarde traidor. Não é à toa que houve uma reação muito forte, quase um golpe de estado, exigindo a volta do rei para Portugal (de novo recomendo "1822").
O fato é que a decisão de dom João 6° - genial ou humilhante, conforme o ponto de vista - antecipou na então colônia um processo que viria mais dia, menos dia. Desde o início, em que pese a colonização predatória instalada pelos portugueses, o Brasil estava fadado a ser grande. E isto incomodou os portugueses.
Hoje, 200 anos depois, esse sentimento ainda é muito presente. Nas três vezes em que estive em Portugal, entre 2005 e 2007, presenciei várias manifestações de orgulho português. Um orgulho exacerbado porque, na realidade, contido. Desde 1808, quando a família real aqui aportou, a influência de Brasil sobre Portugal só cresceu. Em todas as áreas, da economia à cultura, passando pelo esporte.
Nos tempos modernos, isso se vê em vários momentos. Primeiro foi a invasão de dentistas brasileiros - ouvi alguém dizer que foram mais de 20 mil. Depois, a dos jogadores de futebol, que dominam os gramados lusos (a seleção nacional tem três brasileiros naturalizados, sem contar o técnico Luiz Felipe Scolari, que comandou o time durante anos). As prostitutas brasileiras também ocuparam seu espaço - o que faz, alias, muitos portugueses destratarem as mulheres do Brasil, conhecidas pelo "rebolado".
Até a língua pátria, quem diria, começou a mudar. Por influência das nossas telenovelas, sucessos em Portugal. Nossas gírias aos poucos começaram a ser incorporadas pelos jovens portugueses, para desgosto dos mais conservadores. E quando a dominação passa a ser cultural, como a dos EUA, a situação tende a se acentuar. Algo que os portugueses não querem aceitar.
Tudo isso, um processo histórico secular acentuado pela crise financeira atual, atinge diretamente a alma portuguesa (algo bem analisado pelo jornalista João Pereira Coutinho no artigo indicado abaixo).
Embora distantes geograficamente, portugueses e argentinos compartilham algo em comum: a melancolia típica de quem pretende ser novamente algo que um dia foi. Daí para uma certa soberba é um passo – e não é difícil encontrar argentinos e portugueses topetudos. Eles gostam de exaltar as glórias passadas (e ninguém mais vive do passado do que os portugueses, cuja alma ainda espera o retorno do rei dom Sebastião, e os argentinos, que vivem eternamente o legado de Eva e Perón). Consideram melhor tudo o que é local. Proclamam-se desenvolvidos e superiores. Ainda que inúmeras dificuldades batam à porta.
Ah, um último detalhe a uni-los: a soberba de um e outro está diretamente ligada ao crescimento do Brasil.
Para saber mais sobre a crise de Portugal, recomendo os artigos a seguir:
* Calote é a saída para Portugal – Clóvis Rossi
* Incerteza portuguesa – Vaguinaldo Marinheiro
* Sem governo e sem dinheiro, a festa acabou no país que vive das aparências – João Pereira Coutinho
0 comentários:
Postar um comentário