terça-feira, 19 de abril de 2011 | |

A esquerda

O artigo autobiográfico do economista Persio Arida na revista "Piauí" é uma preciosidade. Num texto primoroso, ele coloca as coisas no seu devido lugar, mostrando os erros horrendos dos militares da época, mas também reconhecendo o quão equivocada foi a luta armada. Não apenas na tática, mas igualmente nos propósitos.

Sem querer, Persio dá um roteiro impecável para a Comissão da Verdade que tramita no Congresso e se propõe a reconstituir a história como ela é, pelo lado que ganhou à época e pelo que ganhou agora.

Ali estão, contados com a serenidade possível, praticamente dispensando adjetivos, a sua prisão, a tortura, a asfixia pela asma não medicada, o impacto do assassinato do militante Bacuri. É o que a esquerda quer da comissão.

Mas ali está igualmente uma reflexão madura, honesta e corajosa sobre os erros da militância armada - e avaliação, execução e objetivo. E é isso o que os militares reivindicam da comissão.

Ao falar sobre a luta armada, Persio lembra sua angústia ao finalmente admitir para si próprio: "O que teria acontecido com os direitos humanos se aquele movimento tivesse dado certo?". E responde: "Sua dinâmica continha o mesmo vírus que fez, em outros momentos da história, militantes de excepcional pureza revolucionária se transformarem, no poder, em mandantes de mortes em massa e de torturas. (...) O terror legitimado pela utopia revolucionária. Teríamos trocado seis por meia dúzia".

Então, vamos trucidar mais uma vez os militantes que já foram literalmente trucidados? Desdenhar dos que foram presos, torturados, humilhados e alquebrados? Não. Nem Persio o fez.

Sua conclusão, machadiana, diz tudo numa única frase: "A militância contribuiu, por vias tortas, para a volta da democracia - mas nisso se esgotara todo o seu sentido".

Eis uma boa reflexão para a história -não só a dele, mas a do país.

Fonte: Eliane Cantanhêde, “A verdade”, Folha de S. Paulo, Opinião, 17/4/2011, p. 2.

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A América Latina despede-se hoje de Cuba como a conheceu no último meio século e que foi incorporada à memória sentimental do subcontinente, para ser amada ou odiada.

O 6º Congresso do Partido Comunista Cubano aprovará reformas econômicas que transformarão a ilha caribenha. Não se pode, impunemente, cortar a quinta parte dos postos de trabalho. Nem criar do nada impunemente um setor privado, mesmo limitado.

Marco Aurélio Garcia, o assessor diplomático de Dilma Rousseff, voltou de recente viagem à ilha convencido de que às reformas econômicas que serão lançadas hoje seguir-se-á a prazo relativamente curto a reforma política.

O Brasil, aliás, está sendo partícipe das reformas, embora involuntário. Financia a construção do porto de Mariel, que, segundo Marco Aurélio, só tem sentido se for para exportar para os Estados Unidos. Se é assim, implica o restabelecimento de relações, com todo o cortejo de consequências.

Espero que uma das consequências seja o fim do silêncio sobre Cuba por parte da intelectualidade de esquerda, tema de ensaio de Claudia Hilb, socióloga argentina, lançado pela Paz e Terra.

Claudia, militante de esquerda quando a revolução cubana incendiou corações, lamenta agora o silêncio, que atribui à ilusão de que haveria uma "parte boa" do legado revolucionário, qual seja o nivelamento social, dissociada da "parte ruim", a ditadura, "o domínio total do Estado sobre a sociedade.

A socióloga contesta a tese: "O processo de nivelamento das condições [sociais] e o processo de constituir uma forma política com vocação de dominação total são indissociáveis", diz ela.

Na hora em que a esquerda continua sob os escombros do Muro de Berlim, começa a cair mais um muro. Talvez seja a hora de construir algo com tantos tijolos.

Fonte: Clóvis Rossi, “Adeus, Fidel; adeus, silêncio?”, Folha de S. Paulo, Opinião, 17/4/2011, p. 2.

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