Não sei se me entendem, mas devo confessar que implico com o Natal.
A implicância não se deve a razões religiosas. (...)
Implico com o Natal por razões deste mundo, portanto bem profanas. Quando novembro vai se findando, os sintomas da febre natalina se tornam visíveis numa cidade como São Paulo.
O trânsito, regido por Lúcifer, fica ainda mais demoníaco e a distinção entre as horas mais favoráveis e as de rush desaparece, pois tudo se torna rush. (...)
O Natal se caracteriza, como outras comemorações, por um traço negativo, em grau mais elevado do que as outras: a celebração obrigatória, com data marcada. O comércio inventou os dias das mães, dos pais, da criança, dos namorados, dos amigos e logo vai estender a lista para os amantes ou as amantes secretas e outras categorias.
Em qualquer dessas hipóteses, é possível evitar o ritual de cumprimentos e presentes.
Meu exorcismo, para afastar as pessoas, é curto e grosso: "Mais um dia dos lojistas".
A data natalina está longe da trivialidade desses dias, diretamente vinculados aos interesses comerciais. O mito cristão é poderoso, é belo, mas impõe, mais do que qualquer outro, a observância de certos rituais.
Dentre eles, os presentes ocupam um lugar central. Há quem se encante com o frenesi das compras, com o atravancamento das lojas e das ruas, com a exigência de não se esquecer de ninguém - o esquecimento converte-se num pecado capital -, porém os presentes, ao menos para mim, são um tormento a mais, em meio ao calor dos últimos meses do ano. (...)Mas me pergunto se não poderíamos trocar a dádiva institucionalizada por uma atitude mais espontânea para quem dá e mais inesperada para quem recebe, a de oferecer presentes ao longo do ano? (...)
Diante disso e de outras coisas mais, como a simbologia dos trenós, das renas, do Papai Noel pesadamente vestido, das comidas próprias para o inverno e impróprias para o nosso verão, não seria possível ao menos mudar uma parte dos hábitos, numa perspectiva reformista, ou escalonar o Natal ao longo do ano, numa perspectiva revolucionária, autorizando a escolha individual do mês favorito do Natal?
Desse modo, poderíamos desconcentrar alegrias e aborrecimento e pronunciar frases hoje impensáveis, do gênero: "Meu Natal cai em setembro".
Fonte: Boris Fausto, historiador, “Folha de S. Paulo”, Caderno Mais!, 20/12/09
Belo texto! Parece que leram meu pensamento (sempre gostei de dar presentes ao longo do ano, sem motivo aparente, e sempre detestei a imposição dos presentes em datas específicas).
Em tempo: os vídeos - do também belo Natal no Edifício Prada - são um contraponto cultural ao texto.