quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011 | |

"O jornal de papel e o papel do jornal"

Se for verdade o dito popular de que amigo não é aquele que lhe bajula, mas sim o que lhe diz a verdade, a Folha, 90, é uma grande amiga do Brasil. O papa Bento 16 tem uma frase que eu amo: "Quando se trata da verdade, não se negocia um centímetro".

Eu gosto de coisas irredutíveis, como os troncos das árvores sagradas do candomblé.


Num mundo que concede tanto, que é tão permissivo, é bom ter gente irredutível. Amo Maria Bethânia porque ela não faz concessões. Roberto Carlos, idem. João Gilberto também.

A Folha, a meu ver, é assim. Em vez do ponto de !!!, ela é ponto de ???. É singular porque é plural. É amiga de todos porque não é amiga de ninguém.

Não gosto de ficar tomando porrada da Folha e espero que ela não faça dessas bordoadas um bordão. Nestes anos todos, mesmo como agência de propaganda do jornal, ele jamais me poupou.

Quando Fernando Altério e eu inauguramos o Credicard Hall, naquele vexame de estreia, em 1999, ela nos deu as boas-vindas com o misericordioso título: "Titanic afunda em São Paulo".

E a Folha foi a primeira a dar a notícia da minha separação. Só que eu ainda estava casado...
Por isso, leitor, não dá pra não ler, pra não seguir, pra não acessar, pra não baixar, pra não tuitar...

Eu, particularmente, gosto do jornal de papel. Dizem que ele vai acabar, mas eu duvido. Que os jornais crescerão muito mais na rede, não tenho dúvida.

Mas o jornal de papel só vai acabar quando nós, os leitores do jornal de papel, acabarmos. E somos uma raça de leitores obstinada e crescente nos países emergentes.


O jornal de papel tem de ter seu avatar digital. O sujeito acaba a matéria, mas com um clique no avatar ele vê todos os desdobramentos sobre aquela matéria por meio das novas tecnologias.

Ou seja, o sujeito lê a Folha de manhã e, por meio do avatar da Folha, acompanha o noticiário o dia inteiro, do seu bolso via celular. Modelo de negócios: Folha custa tanto, o avatar custa um tanto mais.

Essa parte não será fácil, mas a indústria vive uma frenética busca de gestão e de inovação que produzirá mais de uma solução. Já está produzindo. E é muito mais difícil mudar o papel do jornal do que atualizar o jornal de papel.

Após décadas de ditadura e uma economia de filme de terror, os melhores mestres do jornalismo estão nas áreas críticas do nosso país: política e economia.

Os maiores jornalistas brasileiros que eu conheço sabem muito sobre esses dois assuntos que definiram a nossa geração. Mas grande parte deles praticamente não se preocupa com nada mais. Eles não se preocupam com fofoca, com culinária, com turismo, com esportes para valer, com decoração, com frescuras. Coisas "inúteis", mas essenciais à vida.

E é aí, e não na tecnologia, que o bicho pega.

Eu espero que a Folha entenda isso. E convide mães, pais, filhos e filhas para opinarem na Folha dos próximos 90 anos.

Afinal, foi com o "seu" Frias conversando e ouvindo "os meninos" que nasceu o jornal mais moderno e mais instigante do Brasil.

Nestes dias em que a Folha celebra conosco seus 90 anos, termino celebrando o "seu" Frias, o DNA deste jornal.

Ele sonhava acordado, com os pés no chão, e influenciou toda uma geração de jovens empreendedores que se seguiram a ele. Vendo um homem já de certa idade, mas com um pensamento tão jovem, nos sentíamos empurrados por aquele peculiar pragmatismo sonhador.

O sonho não acabou. Mas está se transformando. E desse jeito é gostoso envelhecer. Feliz aniversário.

Fonte: Nizan Guanaes, "Folha de S. Paulo", Mercado, 22/2/2011

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