quarta-feira, 26 de março de 2014 | |

Um lugar chamado Paraisópolis

"Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo."

"E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco."
(Trechos de “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo)


Dia desses recebi uma missão difícil: ir para uma das duas maiores favelas de São Paulo, Paraisópolis, na zona sul, e retratar a comunidade.


Missão quase impossível captar imagens e histórias em menos de três horas para retratar em dois minutos de reportagem uma comunidade onde vivem de 60 mil pessoas, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a 100 mil, de acordo com moradores.

Mais que isto: retratar uma comunidade das mais complexas, formada por uma ampla maioria de gente trabalhadora e do bem, grande parte migrante do Nordeste, um lugar também conhecido nacionalmente pelo domínio do tráfico e pela criminalidade (quem mora em São Paulo conhece bem o temor de passar “pela ladeira de Paraisópolis”, na região da avenida Giovanni Gronchi).

Um aparte: talvez nenhum outro lugar exponha de modo tão cru a desigualdade brasileira quanto Paraisópolis. A favela está ao lado, literalmente, a uma rua, de condomínios de luxo do bairro do Morumbi, prédios onde chega a haver uma piscina por apartamento.



E lá fui eu, subindo ladeiras, entrando em becos e vielas, subindo as dezenas de degraus que levam de uma casa para outra e para outra e para outra, tal qual um edifício improvisado, feito laje sobre laje, estas vendidas ou alugadas tal qual um terreno. E até sobre a laje fui parar depois de recorrer a uma escada capenga de madeira e passar por um buraco pequeno que levava ao telhado.





Ouvi histórias simples, histórias incrivelmente ricas, vi gente feliz, gente que confessou querer ir embora dali, acima de tudo gente.

Na viela da Alegria, escura e úmida, o grupo de meninos agia como uma espécie de “guia”. “Corta pra mim!”, disse um dos mais novinhos, entoando bordão famoso na voz do jornalista Marcelo Rezende, que comanda o noticiário policial da TV Record, “Cidade Alerta”.

- Olha, tio, ele tem um dedo a mais!, exclamou um outro garoto.
- Nossa, é mesmo. Você é então o campeão de toda a turma, quem mais tem dedos, seis dedos, disse eu.
- Eu não tenho seis dedos!, retrucou o garoto. Tenho onze!!!



No lugar onde comprei uma coxinha por R$ 1,50 (foi o almoço daquela manhã/tarde que se estendeu além do horário), ouvi a história de um homem sorridente que acabara de se realizar na vida ao largar dez anos de trabalho como empregado para se tornar patrão: a garagem alugada virou um bar/restaurante. “Está dando para pagar as contas”, falou.

Ali mesmo, um outro homem exibindo seu conjunto de tatuagens, gíria típica da periferia paulistana, aproximou-se inquisidor: “E aí mano, qual é a pegada?”. Expliquei que estávamos ali para uma reportagem sobre a vida em Paraisópolis. Ele abandonou o ar bravio e iniciou uma amistosa conversa. Explicou que a garagem agora bar pertencia ao pai dele, que acabara de alugar para o “Gil”. Contou outras histórias dali. Sugeriu que gravássemos na rua perpendicular, justamente o local para onde não deveríamos mirar nossa câmera, segundo a recomendação ouvida minutos antes.

- Mas não é perigoso?, perguntei.
- Né, não, tranquilo.
- Mas não é ponto de tráfico?
- Tranquilo.
- Vocês se sentem seguros aqui?
- Claro! Normal.
- Mas o que a gente vê na TV então é exagerado?
- Lógico!

Diante do contraste de manifestações, retruquei ao interlocutor que havia me recomendado cautela na rua agora indicada a fim de saber se ela era mesmo insegura e a resposta foi elucidativa: “Com vocês não vão fazer nada, mas depois vão querer saber porque eu estou levando a televisão para lá. O risco é meu”.

A conversa mais estranha, marcada por uma aparente falta de confiança (mútua?), foi justamente com quem deveria me guiar por Paraisópolis: um representante da associação de moradores (atenção: não se entra em nenhuma favela sem estes seres). Foi também uma conversa reveladora sobre o que os moradores chamam de lugar seguro. Segurança há, basta seguir as regras. E estas são impostas não pelo Estado ou pela polícia e sim por quem de fato manda na área.

- Antes de começarem a filmar, deixa eu avisar alguém que vocês vão ficar circulando por aí.
- Você tem que avisar alguém? Quem?, perguntei, fazendo-me de ingênuo.
- Eu vou avisar alguém!, respondeu meio rispidamente o representante da associação.

Alguém que, como os milhares em Paraisópolis, vive anonimamente.








Em tempo: naturalmente, seria impossível retratar a complexidade de Paraisópolis nas condições que já mencionei, ainda assim gostei do resultado final da reportagem:

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