quarta-feira, 12 de outubro de 2011 | |

"Narcisistas da informação"

Em Nova York, ainda a capital da mídia norte-americana, o sarcasmo é o piloto automático do humor nacional pós-11 de Setembro. Por isso, um ensaio original publicado por Neal Gabler num suplemento de domingo recente do New York Times foi alfinetado na mídia local, no clima de uma briga de galo niilista.

O artigo, sob o título A Elusiva Grande Ideia, lamentava que a Era da Informação tenha nos transformado em acumuladores de fatos e não pensadores.


Neal Gabler é autor, dentre outros livros, de Vida, o Filme - Como o Entretenimento Conquistou a Realidade e escreveu a melhor biografia de Walt Disney. É também comentarista de mídia na TV, de modo que não pode ser acusado de viver numa bolha de desprezo pela cultura popular.


O diagnóstico feito por Gabler é difícil de contestar. Ele descreve o narcisista da informação, a pessoa consumida pela autorreferência, com sua visão de mundo filtrada pela mídia social. É uma pessoa hiperantenada. Ao longo de um dia o narcisista da informação vai consumir fatos como, o amigo de Facebook no Sri Lanka passeia com o cachorrinho; um jovem sírio convocou um protesto pelo Badoo; um seguidor no Twitter acabou de compartilhar uma foto de Jennifer Anniston beijando o namorado num bar de Santa Mônica; George Clooney pede doações para combater a fome na Somália no YouTube. Ele é um falso cidadão do mundo porque adquirir informação sobre estranhos não é o mesmo que articular a compreensão do que não é familiar. O repertório desse homem informado daria vários sambas-enredo compostos por Stanislaw Ponte Preta, nos moldes do politicamente incorreto Samba do Crioulo Doido.


A comunicação fragmentada é antítese da gestação de grandes ideias. O volume prodigioso de informação, argumenta Gabler, torna difícil notar o aparecimento de um novo Freud ou um novo Einstein. E inovadores geniais como Bill Gates ou Steve Jobs? Eles são inventores que mudaram o nosso cotidiano, não a maneira como pensamos sobre grandes questões. Não é à toa, diz Gabler, que a "grande ideia" migrou para o mercado. Mas há uma diferença entre o que é vendável e o que desafia o intelecto. Aliás, estamos tão prostrados sob o peso da enxurrada de informação que, depois do esforço para recolher tantos fatos inúteis, não temos fôlego para tolerar desafios. Preferimos nos aconchegar com Malcolm Gladwell do que nos perturbar com Marshall McLuhan.


A era digital nos libertou para a ignorância bem informada. Tal como o personagem Chance, de Peter Sellers, em Muito Além do Jardim, que vivia em isolamento sob uma dieta de televisão, podemos impressionar nossos interlocutores regurgitando pensamentos não processados.


As implicações sociais de um mundo que desdenha grandes ideias são enormes, sugere Neal Gabler, porque "as ideias não são apenas brinquedos intelectuais. Elas têm efeitos práticos".


Ele toma como exemplo a profunda crise trazida pela última recessão americana. Nos debates intensos na TV, os pundits atacam e defendem as ideias de John Maynard Keynes sobre o papel do governo na economia. Ideias que apareceram há quase 80 anos. Os eleitores acusam democratas e republicanos de não terem a menor ideia de como salvar a economia do alto desemprego. O problema é que a crise americana não se resolve com pequenas ou médias ideias.


O perigoso governador do Texas e candidato Rick Perry sobe nas pesquisas da próxima eleição presidencial dizendo que não há mudança climática e o planeta só existe há alguns milhares de anos. Ser conservador, no país do Tea Party, é substituir a inconveniência das ideias pelo conforto de convicções que não resistiriam dez minutos expostas aos elementos.


A suposta democratização da informação privilegia o especialista sobre o intelectual público. Houve um tempo em que o deliciosamente sofisticado Dick Cavett reinava com seu talk show onde, no lugar de Paris Hilton ou Lindsay Lohan, podíamos assistir a um duelo entre Norman Mailer e Gore Vidal, interrompido pela ferina Janet Flanner, da revista New Yorker. Não estou inventando, podem conferir a cena no YouTube. O leitor dirá, felizmente temos o YouTube para imortalizar aquele programa. Concordo. Mas arquivar e recolher mais e mais fatos nos torna informados, não iluminados. 


Fonte: Lúcia Guimarães, "O Estado de S. Paulo", 22/8/11.

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