segunda-feira, 11 de outubro de 2010 | |

"O debate do aborto, Miriam Cordeiro 2.0"

Vinte e um anos depois da noite em que Mirian Cordeiro, a ex-namorada de Lula, surpreendeu o país acusando-o de ter sugerido que abortasse a criança que viria a ser sua filha Lurian, a palavra maldita voltou à agenda da sucessão presidencial. Em 1989 a questão do aborto foi fertilizada pelo comando da campanha de Fernando Collor. Desta vez, reapareceu com o mesmo formato oportunista, trazida pela infantaria do tucanato. Nos dois casos, ninguém mostrou-se interessado em discutir o assunto ao longo dos meses anteriores à eleição. O propósito, puramente eleitoral, sairá da agenda depois do dia 27. Até lá, terá emburrecido o debate, rebaixado a campanha e tisnado a biografia dos beneficiários da baixaria.

Há 19 anos tramita na Câmara um projeto que dá à mulher o direito de interromper voluntariamente uma gravidez. Em 2008, por unanimidade, ele foi rejeitado na Comissão de Seguridade Social e Família. Pelo andar da carruagem, se não morrer antes, levará anos para chegar ao plenário. Se e quando isso acontecer, caberá ao Congresso decidir.

Flertando com a transformação do aborto numa "bala de prata" eleitoral, o tucano José Serra expôs sua posição: "Nunca disse que sou contra o aborto porque eu sou a favor, ou melhor, nunca disse que sou a favor, porque sou contra". Em seguida, expôs a ferida petista: "O que está em questão nessa campanha não é ser contra ou a favor. É a mentira". O comissariado petista e Dilma Rousseff defenderam programática e pessoalmente a descriminalização do aborto.

Chegou-se a um conflito de oportunismos. O dos tucanos, que só lembraram do assunto na reta final da campanha, e o dos petistas que, na mesma reta, mudam de opinião.

Afora o oportunismo, o nível da discussão abortou a inteligência. Dilma Rousseff disse que "as mulheres ricas têm acesso a clínicas, mulheres pobres usam agulha de tricô". Propagou a lenda produzida pelo filme "Pixote", de 1981. Mesmo há 30 anos essa prática era desprezível. Hoje, nem pensar. A forma mais comum de aborto se dá com o uso da droga Cytotec. Em tese, sua comercialização é proibida. Na prática, custa em torno de R$ 400 e pode ser comprada pela internet. Estima-se que, de cada dez abortos, sete sejam feitos com Cytotec.

Em 1990, o professor Laurence Tribe, de Harvard, publicou um livro intitulado "Aborto - O Choque de Absolutos". (Entre os seus pesquisadores estava um estudante de direito chamado Barack Obama.) Tribe mostra que o aborto divide as sociedades e, sem uma certeza religiosa, não há como sair do debate seguro de que um lado está certo e o outro, errado. O aborto não é apenas uma questão de saúde pública, como a dengue. Trata-se de um conflito entre o direito do feto à vida e o direito da mulher à liberdade de interromper sua gravidez. (Sempre até o terceiro mês da gestação.)

Em 1973, a Corte Suprema dos Estados Unidos decidiu, por sete a dois, que as mulheres têm esse direito. No mesmo dia, julgaram dois casos. Uma das mulheres abortou. A outra perdeu o prazo e concebeu uma menina. Passaram-se 37 anos, a mãe mudou de ideia e tornou-se uma militante contra o aborto. A filha defende a decisão da Corte, que teria evitado seu nascimento.

No Brasil de hoje é improvável que o Supremo Tribunal Federal reconheça o direito das mulheres de interromper a gravidez. Também é improvável que o Congresso vote uma lei nesse sentido. A candidata Marina Silva, a única a expor uma posição que faz sentido, é contra o aborto, mas remeteria a questão a um plebiscito, no qual a proposta dificilmente seria aprovada.

Sobrou o lixo: a instrumentalização do tema para satanizar adversários políticos. Collor fez isso com rara maestria.

A baixaria circula na campanha presidencial de um país onde a rede pública de saúde do estado de São Paulo mantém, desde 1986, o Programa de Atenção Integral à Adolescente. Para júbilo internacional, entre 1998 e 2008 a internação de adolescentes por conta de abortos caiu de 10 mil por ano para 8.700. Mais: a gravidez de jovens de 10 a 20 anos caiu 38%, para 94 mil. Reduziu-se à metade os casos de segunda gravidez nessa faixa de idade.


Fonte: Elio Gaspari, em coluna na “Folha de S. Paulo”, 10/10/10 (para ler a íntegra, clique
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1 comentários:

Vinícius Paes disse...

A discussão sobre o aborto num país de analfabetos. Creio eu, Rodrigo, que essa discussão deveria ser deixada de fora da corrida eleitoral. O país tem tantas outras necessidades, que deveriam ser priorizadas na campanha. Acredito,também,que essa discussão deveria se tomar nos corredores das universidades,nos congressos acadêmicos, não no horário eleitoral. Este, entre tantos assuntos polêmiocos, não podem ser discutido em portas de igreja, nem de bar. A sociedade brasileira tem que se levar mais a sério.

Grande abraço.