domingo, 14 de fevereiro de 2010 | |

"Ficha limpa na gaveta, suja nas eleições"

Não gosto muito de colocar textos extensos aqui, até porque eles vão contra as características de um blog, mas não poderia abrir mão do meu dever jornalístico de contribuir para o debate nacional e a cidadania diante de um assunto que julgo tão importante como o que segue:

"Um milhão e quinhentas mil assinaturas entregues a Michel Temer (PMDB-SP), presidente da Câmara dos Deputados, em 29 de setembro de 2009, foram o fruto de uma bela e esperançosa campanha nacional visando apresentar um projeto de lei exigindo ficha limpa dos candidatos a cargos eleitorais.

Um evento histórico da maior importância para a democracia brasileira.

Houve destacada participação do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), da presidência da CNBB, dom Geraldo Lyrio e dom Dimas Barbosa, insistindo, na coletiva do dia 11 de dezembro, na agilidade na aprovação do projeto para barrar a corrupção na política.A magnitude do acontecido mereceria uma comemoração das mais festivas. O que se viu, entretanto, depois da entrega oficial, foi um Congresso silencioso, reticente, triste...

O deputado Michel Temer, desde o primeiro momento, se entrincheirou no adiamento da pauta do projeto para fevereiro de 2010, alegando agenda cheia, recesso parlamentar e outras prioridades. Dizia estar dialogando com os líderes para que esse projeto de lei não corresse o risco de 'não ser aprovado'.

Passado um mês de sua entrega, não havia relator designado e entrou no inexorável ritmo do passo lento daquela pesada máquina burocrática. Uma decepção! A ficha limpa foi para a gaveta de Michel Temer. Quanto aos demais deputados, não se tem registro de posicionamento público, a não ser o do deputado José Genoino (PT-SP), que subiu à tribuna, em 4 de novembro, para criticá-lo.

Para Genoino, a proposta é 'inconstitucional' e 'autoritária'. É preciso recordar, porém, que ele é réu no processo do mensalão que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).Seu discurso recebeu apoio de quatro deputados, entre eles o de Geraldo Pudim (PR-RJ), que já foi alvo de questionamentos na Justiça, e Ernandes Amorim (PTB-RO), que admitiu responder a processos e inquéritos judiciais.

Genoino se posiciona pela liberação das fichas sujas nas eleições, pela manutenção da impunidade dos que acorrem à campanha eleitoral em busca de um cargo público, para lhes garantir fórum especial e blindá-los contra os instrumentos comuns e normais da Justiça.

Vários políticos se precipitam em busca da eleição logo após terem cometido crimes, até de homicídio. Conseguem multiplicar recursos financeiros e, consequentemente, o número suficiente de eleitores para elegê-los.

Agora, na semana passada, depois de quatro meses de espera na Câmara, os líderes partidários decidiram criar uma comissão para, simplesmente, modificar o texto da proposta porque, segundo eles, haveria dificuldades de aprovar o veto à candidatura de políticos com condenação em primeira instância na Justiça.

A gente se pergunta: a quem, afinal, esse Congresso representa? Qual a relação que esses nobres deputados têm com a sociedade civil organizada para que uma mobilização popular séria, prevista na Constituição, como a que ofereceu à nação um número tão expressivo de assinaturas, acabe, na Câmara, num leviano joguete de interesses escusos de senhores votando em causa própria?

Está de parabéns dom Dimas, secretário-geral da CNBB, que mais uma vez se posicionou com o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral: 'Não se tolera mais adiamento do projeto. O movimento topa dialogar com quem de direito no Congresso. Não aceita, porém, alterações redacionais que venham desfigurar os princípios que norteiam a iniciativa'.

A ficha limpa é um passo de suma importância para salvar a democracia e para garantir a credibilidade do processo eleitoral. Mas não é tudo, pois uma análise mais profunda do nosso processo eleitoral nos leva à melancólica conclusão de que ele é estruturalmente corrupto.

Vou citar, para concluir, uma autoridade no assunto, João Heliofar de Jesus Villar: 'Como procurador regional eleitoral no Rio Grande do Sul, tive a oportunidade de atuar em quatro eleições e refletir demoradamente sobre essa loucura que é o processo das eleições no Brasil. Quem trabalha na fiscalização dos pleitos sabe que o sistema está desenhado para não funcionar. Não se trata de fiscalização ineficiente e sim de fiscalização impossível. (...) Há um consenso silencioso na classe política de que o caixa dois é uma necessidade inafastável.' ('Corrupção: o ovo da serpente', Tendências/Debates, 4/1).

Antes de qualquer reforma política entregue a esses mesmos senhores, emerge, pois, a nossa inarredável responsabilidade como sociedade civil organizada."

Fonte: Dom Tomás Balduino, mestre em teologia e pós-graduado em antropologia e linguística, é bispo emérito da cidade de Goiás. Publicado na página 3 da "Folha de S. Paulo" de 14/2/2010

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