domingo, 22 de fevereiro de 2009 | |

"Procura-se um nome"

"A invenção que é o espetáculo nos sambódromos do Rio, de São Paulo e de seus imitadores, sendo já o paulistano uma imitação do carioca, ainda leva o nome genérico de Carnaval e o nome particular de desfile das Escolas de Samba. Não é um, nem é outro. Usa aqueles nomes por apropriação indébita. O que é, não sei, e jamais ouvi sequer sugestão a respeito.

Tais como são, esses acontecimentos anuais refletiram, na sua origem, o espírito de "Brasil Grande" que inundava o país de propaganda da ditadura, ainda em sua pior fase. Como padrão estético, se a expressão não exagera demais, aderia e projetava o "padrão Globo" que então começava a impor-se, com a multidão de cores e formas de gosto suburbanamente duvidoso, e constituía a manifestação integral do espírito de "Brasil Grande".

As características do acontecimento levado ao Sambódromo do Rio foram criadas sobretudo por Joãosinho Trinta, desde então saudado acriticamente como prodígio de criatividade. Mas a hábil apreensão do espírito propalado, adaptando a grandes dimensões e a algum repique de tamborins os desfiles à velha maneira europeia (já outrora adaptados aqui pelas Grandes Sociedades), não bastaria para materializar a ideia. Era necessário dinheiro farto e fácil. E um dos repositórios mais satisfeitos por esse dinheiro são os bolsos dos bicheiros. De antigos signatários das listas de arrecadação das escolas de samba autênticas, os bicheiros passaram a tutores, financiadores, presidentes e diretores, orientadores e representantes políticos e sociais das entidades que tomavam o lugar das escolas originais. Donos.

Há mais proximidade entre contravenção e ditadura do que se ousou reconhecer, não só à época, mas até hoje. Graças ao grande poder de influência nos seus domínios ditos carnavalescos, os bicheiros ganharam da ditadura, e da política em geral, passe livre para suas atividades convencionais e, ainda melhor, para enveredar por novas especialidades. Eventuais situações incômodas, só como decorrência de disputas entre políticos, realidade que perdura. Simbólico, mas nem de longe caso único, da proximidade entre contraventores e ditadura aí está, ainda, o capitão Guimarães, que passou direto dos quartéis de repressão e tortura para o controle de uma rede de jogo de bicho e coliderança da classe.

Com a solução financeira, criou-se uma ciranda desatinada. Vários fatores provenientes do novo espetáculo, a começar do preço das entradas, afastaram do Sambódromo carioca o chamado povão. Mas quem, na realidade, paga a maior parte do espetáculo é o povão. Porque é o povão que, na vã esperança de ganhar algunzinho no bicho, engorda os cofres dos bicheiros. É a mágica à brasileira: tiraram do povão o que ele criou e o fazem pagar, sem saber, o custo do que o usurpou e falsifica a sua criação.

Contribuição triste para isso tudo foi a boa intenção do Sambódromo, como projetado por Niemeyer. Sua insipidez estética, a capacidade de acumular calor, o desconforto das arquibancadas já seriam deploráveis. A criação de áreas em tudo privilegiadas, para a comodidade dos camarotes reservados à riqueza e à mediocridade "célebre", completa a contribuição com evidência e ênfase definitivas.

Se o povão fica à margem, Carnaval não é. Misto de exibicionismo por si só, e de chamariz para o turismo sexual, e de montagens delirantes, e sem a alegria tipicamente carnavalesca, Carnaval não é. A música? Boa ou ruim, samba não é. Um ritmo sem nome, criado para um espetáculo sem nome próprio."

Texto de Jânio de Freitas, publicado na "Folha de S. Paulo" neste domingo 22/2/2009

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